Meio de campo

A palmeirização do São Paulo (e a sãopaulinização do Palmeiras)

A palmeirização do São Paulo (e a sãopaulinização do Palmeiras).

13/10/2021

A frase não é minha; e lamento por isso. Porque é muito feliz. Ou triste, dependendo do ponto de vista. Mas é irretocável.

O autor, Gil Rossetti, querido amigo, advogado e palmeirense roxo, ou melhor, verde e branco, foi forjado na dificuldade, na agonia, na dor do jejum de títulos. Construiu-a, pois, com propriedade.  

Viu seu time ser chacoteado, assim como ele também o foi, anos seguidos, pela incapacidade (e incompetência) de agrupamentos cartolariais, que colocavam seus interesses no lugar dos interesses do time – e da torcida.

Ele, e os demais torcedores, assistiram, durante anos, ou décadas, a corneta tocar, o amendoim voar, as intrigas corroerem a história de um time glorioso. O clube vivia em função da política, que afetava o futebol, colocado, então, como coadjuvante de pretensões pessoais.

Mas aquele, ou aqueles (pela longevidade), foram outros tempos. O sistema clubístico, dominado pela política rasa, não cobrava a fatura como cobra nos dias atuais. O futebol, como um todo, não movimentava as cifras que, eventualmente, apenas um jogador isolado movimenta hoje. As receitas eram limitadas. O mercado futebolístico ainda ensaiava a globalização. Times europeus estavam sujeitos a limites de contratação. Não havia internet e meios alternativos de exposição de marca. Atletas passavam mais tempo no Brasil do que no exterior; sonhavam em brilhar com as camisas dos times brasileiros, e não em usá-las como trampolins para equipes estrangeiras.

O sistema ainda era relativamente fechado e regionalizado, e a ausência de títulos não era condição suficiente para construção de fossos intransponíveis entre campeões e perdedores. Bastava um êxito, mesmo que regional, para diminuir o distanciamento e impor uma rápida reaproximação em relação ao time ou ao grupo predominante.

Foi nesse ambiente que o São Paulo se sobressaiu. Nele, foi o melhor.

Durante anos (ou décadas), organizou-se como nenhum outro. Tinha problemas ou desavenças políticas. Mas se resolviam internamente. Seus cardeais, ou conselheiros com espírito tricolor evoluído, continham as mazelas e impediam a proliferação da bagunça. Externamente, era uma unidade. Os jogadores eram preservados. A instituição era preservada. O São Paulo era preservado.

Soube-se, ademais, ousar; tomar decisões arriscadas, as quais colocaram o clube na vanguarda: a construção de um estádio em bairro afastado, bem como os investimentos em centro de treinamento, em estrutura para formação de jovens jogadores e num departamento médico sofisticadíssimo.

Jogar no Morumbi era um peso para qualquer time. Certa vez, aliás, o Presidente do Athletico Paranaense, Mario Celso Petraglia, em uma conversa pública com o autor deste texto, reconheceu essa situação (ou sensação); o que não era à toa.

Não mesmo. O São Paulo atingiu resultados impressionantes: três finais seguidas de libertadores, seguidas por mais duas anos depois, totalizando cinco, em pouco mais de dez anos, consagrando-se campeão em três delas; três finais e três títulos mundiais, no mesmo período, derrubando os gigantescos Barcelona, Milan e Liverpool; outros títulos internacionais e sul-americanos; e o inédito tricampeonato brasileiro consecutivo.

Ganhou paulistas também. Alguns muito importantes, como: o de 1992, com três gols de Raí sobre o Corinthians; o de 1993, sobre o Palmeiras, com mais três gols de Raí; e ainda o de 1998, contra o Corinthians, com nova exibição de gala do maior jogador da história do clube, que desembarcou, na semana do jogo, para marcar seu gol de cabeça e levantar a taça.

Os campeonatos paulistas eram importantes, mas nem tanto. Talvez fossem, naquela época, para Corinthians, que saiu da fila em um jogo envolto em polêmicas, contra a Ponte Preta, em 1977; ou para o próprio Palmeiras, que precisou de vultosos recursos de um patrocinador internacional e da formação de um time-seleção, para, momentaneamente, bater o São Paulo, em 1993.

O São Paulo flutuava em outra dimensão. Lembre-se, aliás: havia resgatado a Libertadores, desprezada pela Globo, que também desprezara Galvão Bueno. Foi pela CNT/Gazeta que o Brasil, sob a voz emocionada do narrador (ciente de que, ali, ressurgiria das cinzas, como fênix), testemunhou, em 1992, o sentimento e a ligação que, desde 1974, sua torcida mantinha com aquele torneio. Mais do que isso: com o planejamento, com o vanguardismo, com a vitória, com o protagonismo e com o seu papel central na história do futebol brasileiro.  

Foi assim que se forjou um time quase invencível no Morumbi – e que, até 2006, jamais havia sido batido por um brasileiro, em libertadores, tendo assim sido construído um ambiente respeitado e admirado (e invejado). Um lugar para onde jogadores se dirigiam, com vistas à recuperação física ou psicológica, mesmo que, após o tratamento, não vestissem a camisa tricolor (por uma decisão do clube, quase sempre). Adriano, o Imperador, talvez tenha tido, com a camisa do São Paulo, seu último grande momento em carreira que poderia ter sido grandiosa.

Pois bem.

Situações que, antes, pareciam improváveis, começaram a se verificar (não necessariamente de maneira simultânea).

A cartolagem são-paulina bebeu na fonte da soberba. Acreditou que era diferente, que o São Paulo era diferente, que as coisas ali eram diferentes. Em outras palavras, que era melhor, mais inteligente, com origem diferenciada.

Pessoas passaram a acreditar que eram essenciais, sobrepondo-se à instituição. Daí se reformou o estatuto social, para preservação da posição de um presidente (inegavelmente competente). Mesmo assim, injustificável. Era o sinal de que as regras e as instituições poderiam ser manipuladas, achincalhadas. A politicalha se exacerbou. Deu-se início à formação de uma espécie de centrão, dirigido por interesses grupais. Os conflitos internos pularam os muros do Morumbi. Rixas pessoais se tornaram públicas. Fofoqueiros de plantão disseminaram verdades (que não interessavam ao futebol, apenas a fins políticos) e inverdades. A reforma do estádio foi barrada pelo conselho deliberativo. Certo presidente se envolveu em luta física e se afastou. O novo estatuto, aprovado por confortável maioria, foi interpretado e utilizado para manutenção do cartolismo – e dos interesses de grupos políticos. O estudo de separação do futebol, exigência do novo estatuto, que sugeria a criação de uma companhia, nos moldes dos mais exitosos times europeus da atualidade, foi engavetado pelo conselho de administração. Os demais órgãos, deliberativo e consultivo, compactuaram com o engavetamento. Não interessava aos fins políticos (e pessoais) que se apoderaram do (e apodrecem o) São Paulo.

Apesar de tudo, após anos de fila, o time parecia maduro para, enfim, ganhar um campeonato nacional. Mas a sucessão presidencial foi desastrosa. Da liderança isolada, e com folga, a poucos jogos do encerramento do campeonato, o time quase não se classificou para Libertadores. Atribui-se a culpa ao treinador – o mesmo que levara aquele time à ponta da tabela. E a um jogador, o maior ganhador de títulos da história, que (a justiça ainda lhe será feita) não era o problema, mas a solução.

Depois, a atual diretoria passou a desprezar, publicamente, o símbolo máximo do desejo da torcida, a Libertadores, e transformou um campeonato irrelevante, o paulista, em copa do mundo.

Pior ainda: comprometeu a temporada, seus jogadores, suas finanças, em nome de uma narrativa insustentável, que se preserva apenas no ambiente das redes sociais. Justificaram-se os problemas e os fracassos apontando os dedos às administrações anteriores, ao endividamento, às contratações equivocadas – como se as atuais produzissem efeitos diversos; enfim, a tudo aquilo que todos já sabiam e ainda sabem, e que não justificam os erros próprios. Sem falar que o clube se tornou uma máquina de moer reputações, ídolos, jogadores e sonhos.

Enquanto isso, o Palmeiras tomou a decisão mais importante de sua história: a troca de um estádio obsoleto por uma moderníssima e imponente arena. Reencontrou, a partir da construção, a identificação com a torcida (não aquela que, na vitória ou na derrota, sempre esteve presente). Reinventou-se. Novos produtos, novos serviços, novas narrativas. Teve a sorte de eleger um presidente-mecenas, que comandou o trabalho de equalização das contas e da reorganização administrativa. A transição presidencial foi realizada sem rupturas (apesar dos amargores pessoais). As rixas internas, não obstante a permanente tentação da expiação pública, passaram a ser resolvidas com surpreendente rapidez – e internamente. Surgiu novo (ou nova) mecenas; que não é mecenas propriamente, na verdade. E que sabe, como poucos ou poucas, a mina que tem nas mãos. O time chegou a duas finais consecutivas de libertadores. E a futura presidente, se fizer o que sabe que deve fazer, constituirá uma SAF, irá a mercado e criará um canal, talvez perene, de acesso a capitais. E assim projetará seu time para o planeta.

Quando a soberana, ou soberba, administração tricolor acordar, será tarde: o tempo perdido, ao contrário do que ocorria nas décadas de 1970, 1980 ou 1990, não se recupera mais. A cada ano, o distanciamento significa 200, 300, 400 milhões de entradas, e cifras similares de endividamento. Qualquer criança, ainda com rudimentares noções de matemática, entenderá que o hiato não se aproximará.

A velocidade do mundo contemporâneo é implacável com a desídia. A palmeirização do São Paulo, levando-se em conta o que este clube foi no passado, talvez seja irreversível, se não for contida imediatamente. O único caminho é a libertação do sistema clubístico, que ignora, usa e abusa de quase 20 milhões de torcedores.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.