Uma leitura apressada da Lei Rodrigo Pacheco (lei 14.193, de 6 de agosto de 2021) poderia deixar a impressão equivocada de que a sociedade anônima do futebol (SAF) se constitui apenas pelas vias listadas no art. 2º, ou seja, pela: (i) transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; (ii) cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência à SAF; ou (iii) iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.
Mas não é só isso o que está previsto na Lei. Além daquelas três vias, uma quarta é expressamente mencionada no art. 3º, a única, aliás, que viabiliza a manutenção da propriedade ou do controle da SAF pelo clube, como se verá abaixo.
Nesse sentido, e de acordo com o mencionado art. 3º, o clube poderá integralizar a sua parcela ao capital da SAF mediante a transferência de seus ativos, tais como, mas não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica – relacionados, em qualquer situação, à atividade futebolística.
Por essa 4ª via, o próprio clube irá constituir uma SAF e transferir-lhe patrimônio para integralização do capital subscrito. Trata-se de operação conhecida como drop down.
O drop down, no âmbito da SAF, deverá ser aprovado pelos associados do clube, na forma do art. 27, parágrafo 2º, da Lei Pelé, conforme nova redação conferida pelo art. 34 da Lei Rodrigo Pacheco: "a entidade a que se refere este artigo poderá utilizar seus bens patrimoniais, desportivos ou sociais, inclusive imobiliários ou de propriedade intelectual, para integralizar sua parcela no capital de Sociedade Anônima do Futebol, ou oferecê-los em garantia, na forma de seu estatuto, ou, se omisso este, mediante aprovação de mais da metade dos associados presentes a assembleia geral especialmente convocada para deliberar o tema".
Como afirmado acima, a via constitutiva prevista no art. 3º é a única que preserva a participação do clube na SAF – e que viabiliza, portanto, a utilização de muitos (e necessários) instrumentos de controle, veto e proteção de interesses difusos (como os de torcedores), do próprio clube e de credores. Vejamos.
Na transformação, prevista no inciso I do art. 2º, opera-se a modificação da natureza do clube, que passa de associação, sem fins lucrativos, à condição de SAF. Neste caso, todos os associados convertem-se em acionistas de uma companhia. Mas não se criam entidades distintas, isto é, um clube e uma SAF, sendo o primeiro acionista da segunda. O resultado da transformação é ilustrado da seguinte forma:
Já a cisão, prevista no inciso II, consiste na operação mediante a qual uma pessoa jurídica – no caso, o clube - transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes. A cisão pode ser total ou parcial, com versão patrimonial para uma ou mais pessoas jurídicas, existentes ou não. A Lei Rodrigo Pacheco refere-se apenas à cisão parcial, ao delimitar a segregação ao patrimônio relacionado ao departamento de futebol, mantendo-se, pois, os demais elementos do clube.
O ponto que surge dessa forma de constituição da SAF é o seguinte: a cisão implica a redução patrimonial do clube e consequente transferência do patrimônio cindido para formação do capital da SAF; mas os subscritores – e titulares das ações – da SAF serão todos os associados do clube, e não a própria SAF. Ao cabo da operação, os associados passarão a ostentar, portanto, além da condição de associados do clube, a de acionistas da SAF, conforme ilustração que se segue:
Essa não deverá ser, portanto, a via mais almejada pelos clubes, que quererão, e com razão, manter vínculo com a SAF, para exercício dos diretos que lhes são conferidos na Lei Rodrigo Pacheco (tais como o veto na alteração de denominação, símbolo, hino ou município da sede). Mais do que isso, aliás: também implicaria o rompimento societário definitivo, inviabilizando o recebimento de dividendos pelo clube.
A terceira modalidade, prevista no inciso III, envolve a constituição da SAF por pessoa natural ou jurídica, ou fundo de investimento. Trata-se de uma nova entidade, sem vínculo com clube, que não afeta os times existentes.
A quarta via constitutiva, contida no art. 3º, é a que, em princípio, deverá oferecer o caminho mais adequado para que clubes possam exercer o papel que a Lei Rodrigo Pacheco lhes reservou, de guardião das tradições clubísticas, enquanto preservarem ao menos uma ação classe A, prevista no inciso VII e no parágrafo 3º, bem como de viabilizador da satisfação de obrigações anteriores à constituição da SAF, observado o disposto no art. 10.
Com efeito, ao promover o drop down, o clube será acionista da SAF – e não os seus associados – e passará a ostentar, em seu balanço, as ações subscritas, que serão lançadas em contrapartida à baixa do patrimônio transferido à SAF. Inexiste, pois, em princípio, perda, redução ou ampliação patrimonial; apenas uma troca de posições para refletir a substituição de bens diversos por ações. No plano estrutural, o resultado é o seguinte:
Conclusão: a Lei Rodrigo Pacheco prevê, de modo expresso, 4 vias de constituição da SAF, que servem para situações e agentes distintos – e não apenas 3, como uma leitura apressada ou isolada do art. 2º poderia erroneamente suscitar.
De todo modo, seria realmente importante que o DREI – Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, órgão que vem fazendo, desde o início da gestão do Diretor (e Professor) André Luiz Santa Cruz Ramos, um trabalho monumental de revisão, simplificação, modernização e regulação do registro público do empresário, estabelecesse e consolidasse, em instrução específica, as diretrizes relacionadas às 4 vias constitutivas da SAF. O País agradecerá. E o futebol brasileiro também.