Num país em que se afirma que o livro – e, portanto, a leitura – são objeto e costume das elites, o que se dirá, então, da ópera (gênero artístico que, em sua estrutura moderna, criado na Itália renascentista, reúne música, teatralização, literatura, dança, história e mitologia).
A percepção talvez tenha fundamento. Não porque, em sua essência, a ópera fora concebida com aquele propósito, mas pelo que se transformou.
Flavia Furtado, diretora executiva do Festival Amazonas de Ópera, afirmou, em vídeo disponível no youtube1, que as apresentações operísticas, no seu auge criativo, atraiam pessoas de distintas classes sociais, algumas delas reunidas nas galerias, para as quais levavam sua alimentação e bebida para acompanhar horas de espetáculo, e que se manifestavam, vivamente, após árias ou interlúdios, quase como torcedoras da “geral”, aplaudindo, ovacionando ou mesmo vaiando as atuações que apreciavam ou não.
A partir, no entanto, do momento em que a produção do espetáculo passou a ter um papel tão ou mais relevante do que a própria obra de arte, as necessidades de financiamento tiveram, como contrapartida, o aumento de ingressos e, assim, o afastamento do povo – e a consequente elitização cultural.
No Brasil, talvez outros fatores tenham contribuído para a identificação do gênero com posturas e manifestações elitistas.
O Theatro Amazonas, por exemplo, nasceu da vontade de uma burguesia emergente, surgida nos ciclos da borracha, de, além de expressar sinais de riqueza, revelar conteúdo e preocupação culturais. O que é louvável, aliás.
Assim se importaram aço, mármore, lustres, escadas, estátuas e colunas da Europa, para formação e reprodução de uma experiência clássica europeia, aqui (ou lá) no trópico.
Os belos teatros municipais do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde muitas das principais montagens são apresentadas, também se construíram com a opulência comparável a algumas das mais importantes casas europeias.
A verdade é que, em sua essência, pela sua abrangência temática, a ópera poderia (ou deveria) servir como espécie de porta de entrada à massificação cultural. Não à toa que a China, como afirma Flavia Furtado, tem realizado pesados investimentos no setor e, de algum modo, movimentado o ambiente no plano mundial.
Além disso, também poderia contribuir com o desenvolvimento econômico e social das cidades brasileiras que abrigam aproximadamente 150 teatros com fossos – número surpreendente e expressivo –, como de fato vem contribuindo para afirmação de Manaus – e do Estado de Amazonas (onde gera mais empregos do que alguns setores industriais beneficiados com incentivos da Zona Franca).
Curiosamente, semelhanças podem ser traçadas em relação ao futebol.
Apesar de ter nascido como prática das elites inglesas, e com essa característica chegado ao Brasil, tornou-se a mais popular das atividades humanas.
Após longo período de popularização, ou democratização, voltou, recentemente, a se submeter a um processo global (e não apenas local) de elitização, simbolizado pelas arenas contemporâneas – nas quais bem-comportados e abastados torcedores pagam pequenas fortunas para acompanhar espetáculos que, dia após dia, tornam-se menos inacessíveis ao trabalhador comum e seus familiares.
Esse mesmo movimento também gerou superpotências no plano esportivo, componentes de duopólios ou oligopólios regionais e internacionais, responsáveis pelo sufocamento dos demais times, concorrentes.
Até mesmo no Brasil, em que a natureza amadora e associativa resiste aos séculos, as demandas mercadológicas globais – e midiáticas locais – incentivam o surgimento de supertimes (como Flamengo, Palmeiras e Galo – sendo que, os dois últimos, desprovidos da mesma estabilidade estrutural que o primeiro, e beneficiários de modelos não replicáveis, apoiados no financiamento por torcedores abastados) que, em pouco tempo, deverão abrir distância insuperável sobre os demais.
O maior sintoma desse processo é revelado pelo afastamento (e, até, pelo estranhamento) do brasileiro de sua própria seleção, outrora símbolo máximo da união e da integração de populações tão díspares quanto, como simples exemplos, a baiana e a catarinense, ou a paranaense e a amazonense.
Ocorre que, apenas no Brasil – e aqui se refuta qualquer pretensão ufanista – reúnem-se as características de um sistema completo: formação espontânea de jogadores, mais de duas dezenas de times com torcida superior a um milhão de torcedores, uma competitividade que abrange praticamente todos os times que disputam o principal campeonato nacional, o interesse (mesmo que esporádico) de aproximadamente 70% da população, uma seleção que encantou o planeta, e o protagonismo das negociações mundiais envolvendo jogadores – dentre outros aspectos.
Por esses motivos, o futebol, assim como a ópera, deve ser acessível ao povo, que o faz grande e mais interessante, aliás.
Não se pretende, é óbvio, o retorno ao amadorismo; muito pelo contrário. Também não se posiciona, por princípio, contra os confortos e as experiências proporcionadas pelas arenas; ao contrário, novamente.
Mas, sim, a favor da reintegração do torcedor comum e da necessidade de emancipação (ou libertação) dos times de futebol da estrutura associativa e de seus dirigentes irresponsáveis, como meios de construção de um sistema sustentável, seguro juridicamente e atrativo do ponto de vista econômico, e, mais ainda, que contemple, em seus modelos, a democratização do acesso ao espetáculo.
Apenas com o ingresso de capitais, para aplicação na formação de jogadores-cidadãos e no desenvolvimento da empresa futebolística, o movimento de elitização despudorada, paradoxalmente, poderá ser interrompido.
Porque, aí sim, deixar-se-á de administrar uma massa falida e, com recursos – e união em torno de um projeto comum –, times (e administradores profissionais) poderão passar a ter mais influência sobre suas decisões, seus modelos organizacionais e suas associações, inclusive para assumir, sem demagogia, ações que privilegiem, também, o torcedor comum.
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1 Disponível aqui.