Mais do que o samba – sem qualquer demérito, ao contrário – o futebol se tornou, de modo involuntário, a maior manifestação cultural do Brasil. Porém, o que deveria ser motivo de orgulho – também sem qualquer pretensão ufanista –, transformou-se num fardo.
O endividamento dos clubes brasileiros soma bilhões de reais; e isso após mais de um século de subvenções e apoios estatais de todas as naturezas (isenção e imunidade tributárias, parcelamento e perdão de dívidas, patrocínios diretos e indiretos, financiamentos, dentre outros).
Alguns motivos, já exaustivamente abordados neste espaço (e que, portanto, não serão agora repisados), explicam as causas da crise. Mas vale lembrar que: (i) a atividade futebolística no Brasil, por mais que se tente apresentar algum verniz de modernidade, ainda é amadora, ineficiente e determinada por movimentos político-associativos; (ii) o sistema cartolarial construiu uma série de dogmas, responsáveis pelo afastamento (ou mesmo pelo sentimento preconceituoso) da sociedade em relação ao futebol e pela percepção (equivocada, aliás) de que se tratava – ou se trataria – de atividade supérflua, ou mesmo alienante, sem (ou com pouca) relevância econômica ou social; e (iii) por servir a interesses mesquinhos – tais como plataformas de lançamento de dirigentes à vida pública e política, dentre muitos outros eventualmente mais condenáveis –, criaram-se barreiras impeditivas ao surgimento (e à coexistência) de modelo alternativo de organização e propriedade da empresa do futebol e, como consequência, de atração de financiadores locais ou internacionais.
Forjou-se, assim, um sistema quase ideal para quem dele se beneficia: afinal, por envolver a paixão popular, passou a ter o Estado como cúmplice e, mais do que isso, como fornecedor de soluções imediatistas e conjunturais – sem preocupação estrutural e reformadora – para os desmandos voluntários e involuntários, criadores do mencionado endividamento (e dos demais males).
Daí, sempre que a situação se torna insustentável, os donos do futebol (ou seja, a classe cartolarial), como sabem que governantes evitarão o peso político da quebra de clube com torcida relevante, entoam, com adaptações, a bela canção de Alcione:
"Não deixe o samba morrer / Não deixe o samba acabar / O morro foi feito de samba / De samba para gente sambar".
Em outras palavras, já se acostumaram a, de tempos em tempos, implorar ao Estado para que não deixe o futebol morrer, para que não deixe o futebol acabar, pois sabem que o governo da vez escalará, como sempre escalou, o contribuinte para pagar a conta dos clubes brasileiros.
Assim como se está tentando fazer, atualmente, no Município de São Paulo, com o movimento que almeja a obtenção de perdão de dívidas de clubes, oriundas do não recolhimento de determinados tributos municipais (v., a propósito, ver aqui)1.
Além de imoral, consiste em vantagem injustificável em um ambiente esportivo que deveria garantir condições equânimes aos seus participantes – sim, pois, São Paulo, Corinthians e Palmeiras receberão (caso vingue o movimento comentado acima) uma ajuda estatal que a Santos, Inter, Grêmio, Athletico, Galo, Fluminense, Botafogo etc., não será concedida. O que não deixa de ser, no jargão futebolístico, uma espécie de doping.
Por outro lado – e aí sim uma perspectiva alvissareira –, convive-se com a iminência da votação, no Senado Federal, do PL 5.516/19, de autoria do seu atual Presidente, Rodrigo Pacheco (DEM/MG). Este PL tem como propósito, ao contrário de todos os projetos (ou leis) que lhe antecederam, arquitetar uma nova forma de encarar, organizar, gerir, financiar, publicizar e deter a propriedade do futebol no País do Futebol; que consiste em atividade de abrangência nacional, com potencial (como nenhuma outra) para contribuir à redução de desigualdades e à inserção social, e, não menos relevante, para ocupar espaço relevante no necessário plano de desenvolvimento econômico.
O “Projeto Rodrigo Pacheco” olha para o presente e para frente (sem recusar as lições do passado), e oferece, com efeito, soluções sistêmicas, por meio da “tipificação da Sociedade Anônima do Futebol, do estabelecimento de normas de governança, controle e transparência, da instituição de meios de financiamento da atividade futebolística e da previsão de um sistema tributário transitório”.
Tudo indica, a propósito, que nas próximas semanas – ou nos próximos dias – será pautado e, enfim, votado no Senado Federal, à luz do Relatório a ser apresentado pelo Senador Carlos Portinho (PL/RJ) – que deve propor ajustes pontuais.
A expectativa é grande; grande como deveria ser o futebol brasileiro (local e mundialmente). Não apenas pelas oportunidades que se abrirão – abordadas em diversos textos neste mesmo espaço –, mas também porque talvez, como nunca, encontrem-se reunidos os elementos e as pessoas, nas posições certas, com condições para impedir que se desperdice mais uma (e possivelmente a última) chance de construção de um grandioso projeto futebolístico nacional.
Ou como diria o personagem de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, na obra Il Gattopardo, para impedir que as mudanças ocorram para ficar tudo como está.
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1 Após o fechamento do texto, a Câmara Municipal de São Paulo noticiou a aprovação de "PL que permite parcelamento de débitos tributários” e que “concede benefício fiscal às determinadas entidades esportivas, templos religiosos e agremiações carnavalescas". (Disponível aqui)