Meio de campo

Protestos em Manchester e o futebol brasileiro

Protestos em Manchester e o futebol brasileiro.

5/5/2021

No último domingo, dia 2 de maio de 2021, centenas de torcedores do Manchester United promoveram manifestações nos arredores do estádio e, após invadirem o campo de jogo, impediram a realização da partida entre Manchester United x Liverpool, que poderia definir o campeão inglês da temporada e, como tal, seria assistida por milhões de torcedores espalhados por todo o mundo.

Os torcedores, cujo protesto foi condenado pelo Governo Inglês e investigado pela polícia em face da violência de alguns atos1, manifestaram sua contrariedade com a gestão do time controlada, desde 2005, por uma bilionária família norte-americana de sobrenome Glazer.

As cores verde e amarela se fizeram presentes, como já vinha acontecendo, nas roupas e na fumaça produzida pelos sinalizadores portados pelos torcedores. O verde-amarelo remete ao uniforme dos primeiros anos de existência do clube, quando, pertencendo aos operários "Lancashire and Yorkshire", uma companhia ferroviária local, o time usava as cores da marca da empresa.

Parece que aquele grupo de torcedores, que se dispôs a impedir a realização do jogo, entende que o modelo de gestão implantado pelos Glazer prioriza os resultados financeiros de uma empresa de abrangência global, como é hoje o United, em detrimento de aspectos relacionados à paixão do torcedor e algumas tradições seculares do time.

Daí até uma forçada interpretação de que haveria um grupo de torcedores ingleses ansiando por um suposto "retorno" dos seus clubes ao modelo associativo similar ao que se pratica no Brasil, vai "um oceano" de distância. Até porque, ninguém retorna para onde nunca esteve. Os clubes ingleses nunca foram associações.

Visto sob diversas camadas de análise, a adoção pelo futebol inglês do obsoleto modelo brasileiro de gestão, no qual os clubes passariam a ser geridos pelo tipo de entidade que se caracteriza pela “união de pessoas que se organizem para fins não econômicos” – conceito de associação contido no artigo 53 do Código Civil Brasileiro – foge completamente do histórico modelo inglês de desenvolvimento da atividade econômica.

Os ingleses sempre tratam negócios como negócios e, desde a sua criação, os times locais foram geridos como empresas. Mesmo quando, muitos deles, se caracterizavam pela reunião de operários para participarem de competições de futebol, repita-se, nunca foram associações. E assim segue sendo, até os dias de hoje, nos quais a prática do esporte mais popular do Mundo movimenta cifras em torno de alguns bilhões de libras no Reino Unido e os resultados de diversos times na rodada do final de semana podem influenciar no valor de suas ações disponibilizadas em bolsa de valores, logo na segunda-feira pela manhã.

No caso particular, é essencial conhecer o contexto histórico da evolução da gestão do Manchester United para se ter a exata e completa compreensão dos movimentos de agora.

No ano de 2001, o FGV/EAESP publicou Relatório de Pesquisa de autoria do Professor Antônio Carlos Kfouri Aidar, com o título: "A Transformação do Modelo de Gestão no Futebol II"2. O Relatório de Pesquisa contém uma preciosidade atemporal, para quem pretenda realmente entender o que se passa com o Manchester United. Há, no estudo, alguns capítulos que explicam, com riqueza de dados e informações, a evolução da gestão dos Reds ao longo dos anos, para mostrar como o clube dos operários da ferrovia se tornou O caso de gestão bem-sucedida no futebol mundial, principalmente nas décadas de 1990 e 2000. É um texto que vale muito a pena ser lido ou, relido vinte anos depois, como no caso do autor deste artigo, que a ele recorreu porque interessado em entender os movimentos dos últimos dias.

O saboroso relato sobre a evolução histórica do modelo de gestão do United aponta que o time sempre teve dono e, sem embargo, uma torcida que "transbordou" do Noroeste Inglês, para se tornar Mundial, com grande número de aficionados no Sudeste Asiático, por exemplo. Uma coisa jamais impediu a outra.

Kfouri Aidar conta que, sob o controle de Mat Busby, que assumiu logo após a II Guerra Mundial, os Reds consolidaram sua identidade, já com uma gestão que tinha um olho na prospecção de talentos e implantação de um modelo próprio de jogo e outro no equilíbrio entre despesas com salários e resultados esportivos. Em determinado momento, porém, Busby procurou um sócio e assim vieram os Edwards, empresários locais, que assumiram a gestão e colocaram o clube, primeiro, entre os grandes da Inglaterra. Sob o controle de Martin Edwards, filho de Louis, o time fez seus movimentos mais ousados: venceu as resistências da Federação Inglesa para distribuir dividendos, lançar ações em bolsa – o que só foi possível após o Relatório Taylor muito bem explicado no Relatório - e, ao mesmo tempo, entre o final dos anos 90 e começo dos anos 2000, conquistou títulos e mais títulos sob a batuta do lendário manager Sir. Alex Ferguson.

Foi então, que Relatório de Pesquisa adotou, coberto de razão à época, o Manchester United como modelo a ser seguido. O estudo pretendia propor um norte para o futebol brasileiro, usando o United como exemplo. Por aqui, até hoje não prosperou. Espera-se, ansiosamente, que com a aprovação do PL 5.516/2019, de autoria do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (DEM/MG), crie-se, enfim, um caminho, mas isso é assunto para outro texto, como foi de tantos anteriores. O fato é que clubes europeus, inclusive o rival local do Manchester, seguiram, em muitos aspectos, conceitos trazidos pelo United e, como sói poderia ser, voltaram a competir com ele de igual para igual, ou mesmo, como o futebol é eminentemente cíclico, suplantá-lo nas competições.

Os Glazer administram hoje um time que não vive mais um dos seus períodos de glória, certamente. Apesar de, de dois anos para cá, mostrar alguns indícios de retomada e reação.

Esse quadro reforça os argumentos dos "torcedores-raiz", que protestam mesmo porque o time não ganha como já ganhou, mas alegam incômodo causado a partir da percepção de que seu time, sua "paixão", teria sido "vendida" a um fundo familiar norte-americano que, para reforçar os estigmas, também é dono do atual campeão da NFL, e, por inegáveis dificuldades de comunicação, em várias situações, não consegue se mostrar realmente engajado em temas essenciais ao torcedor, como tradição, conquistas de títulos e uma paixão abnegada – e, no mais das vezes romântica e infelizmente irreal - que suplantaria a busca pelo lucro.

"O time pode até ser um negócio para Você, desde que Você mostre que o ama como eu, torcedor, amo". Esse é o grito da torcida-raiz do United, pequena em relação aos milhões pelo mundo, mas barulhenta e, porque não dizer, relevante. Falta aos Glazer entenderem que o futebol como negócio só prospera quando o gestor compreende que é um "vendedor de emoções" e, como tal, jamais venderá seu produto se ele vier "frio, sem gosto ou sem alma".

Portanto, como acontece em tantas empresas, os protestos devem levar os Glazer a refletir e redefinir sua comunicação com toda gama de torcedores, os mais modernos que vestem a camisa vermelha e assiste aos jogos pela TV no interior do Vietnã, ou aqueles operários descendentes dos fundadores do clube que protestam de verde e amarelo. Sem isso, não prosperarão à frente do United e, por conseguinte, também perderão muito dinheiro.

Trata-se, pois, de um ajuste fino e, ao mesmo tempo, indispensável que os atuais donos precisam fazer para que o torcedor se sinta ouvido. E isso não é pouca coisa nem de menor importância. Porém, daí até se pretender interpretar que o que está sob discussão não é a gestão dos Glazer, mas sim o consolidado modelo empresarial que é a força motriz da prosperidade do futebol inglês, repita-se, vai enorme distância.

Para ilustrar, vale voltar à História. Esta nos conta que o time dos operários "Lancashire and Yorkshire" faliu e só seguiu suas atividades porque foi comprado por um rico produtor de cerveja que, como o time era muito novo, entendeu por bem adotar a cor vermelha, de suas marcas, no uniforme. Hoje, os Reds conquistaram fama e milhões de torcedores nos quatro cantos do Planeta e cogitar qualquer mudança na cor do United soaria como uma hecatombe monumental.

Particularmente, duvido muito que a imensa torcida dos Reds, mesmo os saudosistas que protestam de verde amarelo, prefeririam contar a história de um clube da Cidade que acabou no começo do século XX e usava essas cores, a terem vivido todas as emoções das inúmeras conquistas que a, desde sempre, empresa Manchester United celebrou trajado de vermelho.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.