Meio de campo

O "Projeto Rodrigo Pacheco" (PL 5.516/19) e a mudança de rumo do futebol brasileiro

O "Projeto Rodrigo Pacheco" (PL 5.516/19) e a mudança de rumo do futebol brasileiro.

28/4/2021

Em obra fundamental do pensamento ocidental – O homem despertado: imaginação e esperança (Civilização Brasileira, 2020) – Roberto Mangabeira Unger afirma que o pragmatismo se tornou "a filosofia da nossa era". Nas mãos de muitos de seus devotos, continua o pensador, "transformou-se em outra versão da senilidade mascarada como sabedoria". E arremata: "eles acham que cresceram. Na verdade, decaíram". Mais adiante, no mesmo capítulo inaugural da mencionada obra, oferece uma espécie de alento, ou de esperança: "nunca é tarde para mudar o rumo. (...) Imaginação e esperança serão os nossos guias gêmeos".

Apesar das múltiplas e, na maioria das vezes, fracassadas definições do termo pragmatismo, até porque invariavelmente amparadas em conceitos (ou preconceitos) morais ou políticos (ou de outras naturezas), o filósofo Arthur Oncken Lovejoy formulou uma esquematização de formas pragmáticas, apresentada de modo suscinto no Dicionário de Filosofia, de José Ferrater Mora (Martins Fontes, 1993).

Interessa, para os propósitos deste texto, a forma definida como "teorias pragmatistas do critério de validade de um juízo", a partir da qual deriva o seguinte postulado: "são verdadeiras as proposições gerais que viram realizadas na experiência passada as predições implicadas, não havendo outro critério da verdade de um juízo" (idem).

Em uma análise superficial – e carregada de uma voluntária ou involuntária opção pela alienação –, talvez se pudesse afirmar que a atual situação do futebol brasileiro decorre de uma opção histórica pelo pragmatismo, qualquer que seja o sentido que se pretenda dar-lhe (e mesmo que dissimule a defesa de posições ou de privilégios).

Afinal, de sua origem aristocrática, o esporte importado da Inglaterra amalgamou-se às classes operárias, que passaram a produzir os principais protagonistas do jogo, transformando-o em referência planetária. Não só isso: pela secular via organizacional associativa, também viabilizou uma série de títulos sul-americanos e mundiais, obtidos por clubes nacionais, e 5 copas do mundo, conquistadas pela seleção.

Mas isso foi obra do passado. Um passado que ainda haverá de ser reavaliado porque, apesar de sua idealização (e romantização, a partir do ponto de vista do usurpador), construiu um sistema de ganhos isolados (e egoísticos) e nada propenso à inserção e à distribuição.

O problema é que o modelo fraquejou, não apenas em terras brasileiras, como em todos os principais centros de prática do esporte. Aliás, mais do que isso: foi superado pela introdução, sobretudo em países europeus, de formas jurídicas ou societárias compassadas com a realidade tecnológica e a necessidade de financiamento de uma atividade global e competitiva.  

Ocorre que, apesar de todos os sinais internos e externos, uma – e a principal – característica organizacional não se abalou, neste nosso país: os donos do poder mantiveram-se onde estavam (e ainda estão), revezando-se, entre correntes político-clubísticas, que resistem às transformações econômicas, e se antagonizam, em regra, não pela divergência ideológica, e, sim, pelo acesso e domínio dos ativos materiais e imateriais do futebol.

As palavras de Raymundo Faoro se encaixam, assim, com precisão, no sistema implementado no século retrasado, no âmbito dos clubes sem fins lucrativos, proprietários dos times de futebol brasileiros: "a comunidade política (no caso, a comunidade cartolarial) conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados (no caso, como negócios próprios) seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam gradualmente. (...) Dessa realidade se projeta, em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio: o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo – assim é porque sempre foi" (Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro, Globo, 2001).

Em outras palavras, o principal argumento de sustentação do sistema associativo, como via única de detenção da propriedade da empresa futebolística, se ampara num argumento pseudo-pragmático, que afirma a suposta viabilidade atual do que foi viável no passado, desconsiderando-se todas as descobertas, evoluções e novas técnicas de financiamento e gestão do futebol, adotadas sobretudo a partir dos anos 1980.

Longe de ser uma simples manifestação esportiva ou um passatempo lúdico, o futebol passou a ser um poderoso meio de criação e distribuição de riquezas e de desenvolvimento social, motivando sua inclusão em pautas de governos (e mesmo de estados) estrangeiros. 

Paradoxalmente, o Brasil, maior gerador de jogadores do planeta (que representam em torno de 10% de todas as negociações globais), detentor de todos os elementos que comporiam, se existisse incentivo ao financiamento da empresa do futebol, um ecossistema equilibrado – história, tradição, formação de jogadores, times locais, regionais e nacionais, campeonatos competitivos, seleção mais vencedora da história –, não se preocupava, ou melhor, desprezava, a sua potencialidade.

O desprezo talvez decorresse (e decorra) do discurso da classe cartolarial, que prosperou com base em mentiras que são apresentadas e repetidas como verdades: a inviabilidade empresarial da atividade do futebol e a posição clubística, como meio de salvaguardar o patrimônio esportivo-cultural. Patrimônio que os próprios cartolas delapidaram.

Se não houver mudança de rumo; aliás, mais do que isso: se o novo rumo não for adequado (e sucumbir à filosofia do poder), o país terá perdido possivelmente a última chance de resgatar uma atividade que é acompanhada, com menor ou maior intensidade, por aproximadamente 140 milhões de pessoas – e que poderia se expandir para centenas de milhões de pessoas, espalhadas por outros países.

Portanto, o que está agora em jogo (com o perdão do trocadilho), no Senado Federal, com o PL 5.516/19, de autoria do Presidente Rodrigo Pacheco (DEM/MG), e que aparentemente será pautado nos próximos dias (aguardando-se, apenas, a conclusão do relatório do Relator, Senador Carlos Portinho – PL/RJ), é justamente a revisão (e correção) da distorção organizacional e patrimonial, responsável pela falência sistêmica e pela transformação de uma fonte (inesgotável) de riqueza (em sentidos econômico, social e educacional) em uma (praticamente) mera via de exportação de pé-de-obra.

Daí a esperança que se deposita no Senado Federal (e no Congresso Nacional).

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.