Os efeitos da desesperada (e daí muitíssimo criativa) batalha do Figueirense, popular clube de futebol catarinense, para ser reconhecido como empresa, apesar de ter sido constituído e sempre operado como associação civil, projetar-se-á sobre o universo dos clubes brasileiros e os envolverá em um ambiente de incontornável incerteza e insegurança. A solução individualista poderá, é verdade, dar algum fôlego ao clube para esticar sua agonia, à conta de credores; mas não o tornará saudável, sustentável e competitivo.
Há apenas uma saída (para o Figueirense e para as centenas de endividados clubes brasileiros): um novo marco regulatório, que crie o novo mercado do futebol, com a regulação (i) da sociedade anônima do futebol, (ii) de técnicas próprias de governação e controle das práticas gerenciais, (iii) de vias de recuperação, tratamento de passivos e financiamento da empresa futebolística, e (iv) de um sistema racional (e transitório) de tributação.
A partir dessas proposições, explica-se, inicial e brevemente, o Caso Figueirense; na sequência, serão apresentados os riscos de seus desdobramentos; e ao final sugere-se e se aborda a solução sistêmica, de natureza legislativa.
O Caso
No dia 11 de março, o Figueirense Futebol Clube ("Clube"), constituído sob a forma de associação civil, requereu, em conjunto com o Figueirense Futebol Clube Ltda. ("Empresa"), concessão de Tutela Cautelar em Caráter Antecedente, Preparatória de Pedido de Recuperação Empresarial ("Requerimento").
O Clube e a Empresa são entidades distintas, controladas por pessoas ou estruturas também distintas. A Empresa, formada em 2014, celebrou, em 2017, uma série de negócios que resultaram, pelo que se depreende do Requerimento, na transferência ou cessão de ativos originalmente detidos pelo Clube.
Anunciou-se, à época, que a parceria envolveria, dentre outros aspectos, (i) a assunção, pelo investidor – que teria por trás um fundo de investimentos internacional, cuja identidade jamais foi revelada –, de dívidas da ordem de R$80 milhões e (ii) o controle de atividades primárias e essenciais do futebol. Apesar da existência de relações jurídicas contratuais entre ambas as entidades, não haveria coincidência de comando, dependência ou vinculação. Portanto, cada uma atuaria de modo independente – e correndo seus próprios riscos.
Ressalta-se, aqui, a falta de transparência e de informações sobre a estrutura original do negócio e, em especial, sobre a identidade do beneficiário final (ou seja: o idealizador e suposto provedor de recursos para a Empresa) e seus propósitos1. Mas essas características foram, diante da inexistência de um marco regulatório adequado, admitidas pelos associados do Figueirense, que aprovaram o negócio.
Como se antevia, com base no histórico de negociações obscuras ocorridas desde o advento da Lei Pelé, os resultados se revelaram muito diferentes dos prometidos: seja por incompetência ou por má-fé na gestão da parceria e dos gestores (e controladores) das partes envolvidas, o endividamento aumentou de modo relevante (estima-se que seja, atualmente, da ordem de R$165 milhões2), as obrigações deixaram de ser honradas e o time amargou vergonhoso rebaixamento à terceira divisão do Campeonato Brasileiro. Em outras palavras, presenteou-se a coletividade de torcedores do Figueirense com a ruína e o caos.
Os Riscos do Requerimento
Para tentar sair do caos individual, o Clube e a Empresa trouxeram uma nova modalidade de conduta individualista, tornando ainda mais complexa a caótica situação da atividade (ou da indústria) futebolística.
Explica-se.
Clubes de futebol se organizam, historicamente, como associações sem fins econômicos. Associações não ostentam natureza empresarial – e, sim, civil –, não distribuem seus excedentes (lucros) aos associados, existem para cumprir as finalidades (não empresariais) para as quais foram criadas e se beneficiam de regimes tributários diferenciados.
Uma – senão a principal – consequência de sua natureza não econômica é a inaplicabilidade – para o bem e para o mal – das normas próprias do empresário, dentre elas as contidas na lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ("Lei de Recuperações e Falências").
A propósito, o art. 1º dessa lei - recentemente alterada pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020 -, não foi modificado para estender aos “agentes econômicos” a legitimidade para requerer recuperação empresarial e falência. Assim, manteve-se sua abrangência ao empresário e à sociedade empresária.
Portanto, se, por um lado, o clube, ao assumir a natureza civil – e não empresarial - se priva do acesso aos instrumentos de financiamento de atividades produtivas disponíveis no mercado aos empresários em geral, por outro, protege-se das vicissitudes da própria atividade empresarial, que é, por definição, uma opção pelo risco, dentre elas a falência.
O Clube Figueirense empreende, nesse momento, batalha para ter sua natureza empresarial reconhecida porque, isoladamente, a recuperação da Empresa Figueirense não resolve o problema da marca, do futebol, da atividade (e dos torcedores). Apenas a extensão dos efeitos recuperacionais ao Clube poderá prover alguma esperança.
Assim, se tiver êxito em sua empreitada, terá, por via transversa, subvertido (talvez de modo involuntário, ou não) 120 anos de um regime protetivo, que vem sendo defendido com todas as forças pelos dirigentes que se sucedem no comando de clubes associativos (porque, em última análise, induziu e viabilizou – como ainda induz e viabiliza – a gestão irresponsável e temerária, e a obtenção de vantagens pessoais, que levaram ao acúmulo de uma dívida da ordem de R$ 7 bilhões).
Os motivos da subversão são os seguintes: primeiro, se um clube associativo desenvolve atividade empresarial, e pode requerer recuperação, também poderá, nesta hipótese, vê-la convolada em falência, se o plano não for aprovado ou executado.
Segundo (decorrente do primeiro), se o clube está autorizado a requerer recuperação, também estarão os milhares de credores das centenas de clubes devedores autorizados a requerer falência das entidades associativas, operadoras de empresas do futebol.
Terceiro, e não menos relevante, a decisão do Figueirense, obtida em notável esforço intelectual de seus advogados, poderá não se reproduzir em outros foros ou tribunais, criando um ambiente de incerteza e insegurança jurídica ao já debilitado futebol brasileiro.
Portanto, mesmo que a decisão ofereça fôlego imediato a um agente específico, em função de um caso também específico e concreto, não criará o ambiente sistêmico necessário ao resgate da atividade do futebol, que pressupõe normas e técnicas institucionalizadas, aptas a oferecer confiança e segurança.
A Solução
A decisão no Caso Figueirense é proferida de modo casuístico. Ao beneficiar um agente de modo isolado, desconsidera os efeitos econômicos, não computados no caminho individual escolhido pelo Clube. O seu deslinde não significa que os demais poderão, ao segui-lo, atingir o mesmo resultado. E muito menos que, ao obterem uma decisão autorizativa de iniciação de um processo concursal, atrairão bons investidores ou a aceitação de credores. Pode se revelar, assim, o princípio da falência.
Mais o do que isso, aliás: significa, sob outro ângulo (na verdade, o outro lado da mesma moeda), que foi aberta a possibilidade de credores, com base na mesma tese, requererem a falência de seus devedores: os mais de 700 clubes brasileiros.
Ou seja, a conta decorrente da falta de preocupação generalizada com uma solução sistêmica para o Brasil, que vem sendo rebaixado à posição de exportador terceiro-mundista de commodity, será distribuída aos demais clubes, os quais, a partir de agora, além de não poderem acessar instrumentos adequados de financiamento da empresa futebolística, podem, a depender da “corrente” de pensamento do magistrado que analisará o caso concreto, falir.
Os dirigentes, donos do futebol brasileiro, conseguiram o que parecia impossível: apequenaram a importância da atividade para o País, manipularam os legisladores, distanciaram os torcedores, construíram dívidas bilionárias e instituíram o caos.
Por tudo isso, não haverá solução fora de uma remodelação sistêmica, que trate, inclusive, do problema do endividamento. É esse, aliás, o esforço que vem sendo empreendido pelo Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG), autor do PL 5.516/19, que, além de outros temas prioritários e emergenciais – o principal deles o enfrentamento da crise pandêmica e a solução para vacinação da população – afirma, desde a sua posse, a intenção de pautar, com brevidade, a votação do novo marco do futebol.
O Presidente Rodrigo Pacheco nomeou o Senador Carlos Portinho (PL/RJ) para relatoria. Desde a nomeação, o Relator vem dialogando com os agentes envolvidos e interessados no futebol. Faz bem. É o pressuposto do regime democrático.
Espera-se, porém, que saiba, em sua relevante função, produzir um relatório que atenda aos interesses do Brasil – e do torcedor brasileiro –, e não de herméticos grupos de poder, que, além de terem destruído a riqueza nacional, defenderam – e defendem - posições egoísticas e interessadas, divorciadas das causas grandiosas – como é a causa do futebol, sob os prismas social, econômico, esportivo e educacional.
As expectativas são, portanto, muito grandes, como grande foi o futebol brasileiro, que poderá voltar a ostentar a mesma – ou maior - dimensão, se o bom caminho, no plano legislativo, for, enfim, pavimentado.
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1 Esta coluna publicou, em 2017, texto com o título "E agora, torcedor do Figueirense?". Nele, além de apontar a falta de clareza em relação ao negócio que se anunciava, questionou-se a viabilidade do sonho que se prometia e se afirmou que "[e]nquanto não se refundar a estrutura do futebol brasileiro, as iniciativas - mesmo que, na essência, bem intencionadas - isoladas e pouco transparentes continuarão a estimular a sensação - ou a certeza - de que se mantém o aviltamento do patrimônio futebolístico nacional. Torçamos, entretanto, para que, um dia, não se perceba, subitamente, que 'a festa [ou o jogo] acabou, a luz apagou, o [investidor ou a torcida] sumiu''". Disponível aqui.