Não se pode brincar com a situação pandêmica que assola o planeta – e seus habitantes. Comparações com outras atividades correm o risco de desrespeitar a dor coletiva, as pessoas que se foram, as que ficaram com feridas insuperáveis e as que, de outras maneiras, perderam parcelas de suas vidas úteis. Mas referências, além de inevitáveis, podem ser pertinentes.
Aliás, choca, nesse cenário, a postura de parte da população – sobretudo das classes mais favorecidas, supostamente bem informadas – que se rendeu ao (pseudo) isolamento, e mesmo assim sem convicção, somente após a ameaça de congestionamento no acesso a leitos dos hospitais particulares.
Esse padrão de conduta não é, infelizmente, inovador. Na atual conjuntura de crise sistêmica, o individualismo da sociedade brasileira talvez emerja com mais intensidade, mas esteve presente desde o assentamento das populações europeias, criadoras, aqui e em qualquer outro território colonizado, de culturas essencialmente patrimonialistas.
Daí a sensação de normalidade em relação a práticas anormais, como as bolhas condominiais (que se fecham às cidades), a blindagem automobilística e o congestionamento aéreo de helicópteros (símbolo extremo do distanciamento das realidades das gentes).
Fato é que, no Brasil, vive-se uma série de situações com potencial devastador (inclusive, em alguns casos, superior ao da Covid-19): miséria, fome, ausência de saneamento básico, déficit educacional, preconceito, racismo e feminicídio.
Nesse mesmo sentido, a importância do futebol também vem sendo detonada, voluntária ou involuntariamente, por conta da falta de preocupação (ou do desprezo) com uma atividade que, nascida elitista, tornou-se popular e passou a simbolizar uma das poucas vias de mobilidade social.
Ao contrário da crise sanitária que se espalhou, em curto prazo, por todas as regiões do planeta, a crise do futebol brasileiro é antiga e longeva. E não se revelou, até agora, aptidão para, conforme se verificou em outros países, reagir e antever soluções regulatórias adequadas à formação de um ambiente resiliente e saudável, além de relevante social e economicamente.
Esse é o ponto.
Não se trata, o futebol, de tema irrelevante ou com finalidade apenas recreativa ou lúdica. Aliás, se caracteriza justamente por oferecer diferentes perspectivas, das mais singelas às realmente transformadoras.
A verdade é que preponderou – e ainda prepondera – a sensação e o discurso de certa irrelevância sistêmica. Não à toa, costuma-se afirmar que o futebol é a mais importante das coisas menos importantes.
O lema – inverídico – é sustentado justamente pelos donos do futebol: cartolas que se sucedem no comando de associações sem fins lucrativos, politizadas e nada transparentes; e repetido por pouquíssimos agentes que se beneficiam da estrutura concentrada de poder – e das mazelas internas e externas.
Há motivo para essa insistência retórica: com ela, a sociedade distanciou-se de atividade que já foi associada ao ser brasileiro, e passou a considerar com naturalidade a decadência de times e da própria seleção nacional, abandonando a sua própria identidade.
O cenário de terra arrasada inibiu – como ainda inibe – movimentos transformacionais, e permitiu o encastelamento da classe cartolarial.
O problema é que se atingiu tal nível de destruição, que afeta, de modo estrutural, a capacidade generalizada de formação de jovens jogadores, de geração de renda e riquezas, de incremento da perspectiva tributária do Estado, de atração de patrocínios, de criação de um sistema sustentável e colaborativo, e de afirmação de uma atividade social e economicamente relevante.
A sensação, com efeito, nessa terra arrasada, é que cada um busca se salvar como puder e preservar o (pouco) que ainda tem – depois de ter participado e contribuído para tais resultados –, e assim incentiva a autodestruição coletiva.
Infelizmente, clubes tradicionais como o Cruzeiro, o Botafogo e o Vasco, rebaixados à segunda divisão; o pífio rendimento do Palmeiras – uma das duas maiores potências atuais do futebol brasileiro – na Copa Mundial de Clubes; e, ainda, a desesperada tentativa do Figueirense, time mais popular de Santa Catarina, de tentar se salvar por via da criatividade jurídica, mediante futuro pedido de recuperação judicial; reforçam todos os argumentos apresentados.
Resgatando-se, novamente, o cenário pandêmico – e com as escusas pela comparação –, assim como não haverá solução sem vacina, no plano do futebol também não se construirá um caminho salvador sem um novo marco regulatório, que traga confiança aos agentes que dele fizerem ou pretenderem fazer parte.
A esperança está depositada no presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (DEM/MG), que, ao que tudo indica, pretende enfrentar e contribuir para solucionar ambos os problemas: a viabilização política de caminhos para aquisição de vacinas e a vacinação coletiva, e a criação de um novo marco regulatório, instituidor do novo mercado do futebol.
Torçamos para que os dois se resolvam, com muita rapidez, em benefício do País e de seu povo.