Meio de campo

Ignácio de Loyola Brandão, Daniel Alves, futebol e o futuro da sociedade

Ignácio de Loyola Brandão, Daniel Alves, futebol e o futuro da sociedade.

3/2/2021

Em obra fundamental da literatura nacional, Ignácio de Loyola Brandão, titular da cadeira nº 11 da Academia Brasileira de Letras, escreve o seguinte sobre a árvore: "[d]ebaixo da terra é a treva, repousa o escuro profundo. Como antes da criação do mundo (...). Acima da terra é a luz. A árvore é a união desses dois mundos. Leva a luz ao vazio tenebroso. Leva para o fundo da terra o ar que ele necessita para se refazer e fornecer a vida."1

A proposição, que bem merecia se tornar lema ou hino de uma geração que parece (apenas parece) acordar para as criminosas ações contra a natureza – e, em última análise, contra a humanidade –, encontra-se, sem dúvida de maneira involuntária, nas palavras do jogador de futebol Daniel Alves; palavras que se tornaram motivo de linchamento público, semanas atrás.

Antes de resgatá-las, vale lembrar que defendo, desde que me envolvi com o estudo do futebol, não se tratar tal atividade apenas de manifestação lúdico-esportiva. Num país como o Brasil, marcado pela desigualdade social e econômica – logo, também desigual em oportunidades –, e em cujo território centenas de milhares de crianças sonham o sonho salvador de uma vida melhor por meio do futebol, o Estado, os governantes e a sociedade deveriam levá-lo a sério, como meio de inserção e desenvolvimento social.

A propósito, certa vez ouvi de um líder comunitário que um candidato a cargo político lhe prometera melhorias das condições escolares em sua região. Para surpresa geral de seus interlocutores, ele esnobou a perspectiva porque, apesar de iniciativa necessária, a estrutura de influência local, em sua opinião, não permitiria o desenvolvimento da comunidade apenas por meio da educação formal, adequada aos padrões dos filhos dos integrantes das classes média e mais altas.

Disse mais: o sonho de uma vida melhor, por meio da dedicação ao estudo, era um sonho essencialmente burguês (pequeno a grande burguês), de crianças sorteadas com condições mínimas de manutenção de vida relativamente estável.

E logo exemplificou, referindo-se a certo menino: joga muita bola; mas mal tem onde dormir; o pai o abandonou; a mãe acorda de madrugada, pega algumas conduções, para ganhar um salário mínimo; volta destruída; o filho passa o dia na rua; sua referência não é o pai e não quer a vida sacrificada da mãe; não se interessa pela escola; o futebol, como meio de sobrevivência, está longe de seu alcance; mas talvez o futebol pudesse ser um atrativo para que se sentisse atraído pela escola, só não sei como; enquanto pensamos em solução, ele foi cooptado; seu objetivo é a ilusória ostentação imediata de um smartphone, de um tênis da moda e outras coisas semelhantes.

O livre arbítrio, que vocês tanto defendem – prosseguiu –, que de fato é um ideal a ser perseguido, deveria pressupor, no entanto, uma sociedade igualitária (e justa). Não será, pois, pelo envio de um professor mais qualificado, pela reforma do prédio escolar ou pela chegada de alguns livros, que se salvarão, em massa, crianças dessa quebrada; uma ou outra, algumas, na melhor hipótese, mas não como solução sistêmica.

O problema – ele concluiu – é estrutural e envolve a formação da sociedade, desde a sua origem, séculos atrás: quem tem, não se preocupa com quem não tem, exceto sob a forma de esmola, caridades ou de outras ações aliviadoras do peso de consciência.

Aí entra a preocupação quase profética do acadêmico Ignácio de Loyola Brandão com o meio-ambiente; aí também entram, e com isso se resgata o eixo central do presente texto, o futebol e uma das mais relevantes manifestações recentes de um jogador brasileiro.

Daniel Alves afirmou, apesar da dor carregada há pelo menos uma década pela torcida tricolor – dor que parece furar o coração, em fenômeno comparável ao que se sucede com o furo na mão de Souza –, que o trabalho do técnico Fernando Diniz seria elogiável, espetacular mesmo, porque “(...) [ele] teve que potencializar, ensinar, encorajar jogadores que estavam desacreditados por todos a serem melhores do que eram, a performar bem, a serem alguém respeitado na vida. O trabalho do Diniz não se resume em criar grandes jogadores, mas grandes seres humanos, conceitualmente, em vários aspectos”.

Tivessem essas considerações sido proferidas após a consagração de um título, estampariam as primeiras páginas de jornais pelo mundo, e o futebol, por dois ou três dias, seria debatido, no Brasil, em programas de rádio e de televisão, sob as perspectivas educacionais e culturais – até se perderem em cartões amarelos e vermelhos, impedimentos e contratações. Mas, ao menos, serviriam como plantio de uma semente essencial à reconstrução de um modelo sustentável, social e economicamente.

Como, infelizmente, foram ditas no auge de uma crise futebolística – a maior da história do São Paulo –, além de ridicularizadas, caíram rapidamente no esquecimento, para tranquilidade do Esquema.

Assim se mantêm os propósitos "subdesenvolvimentistas" dos donos do futebol, que não se preocupam com a formação de cidadãos, desde a base até a aposentadoria (basta ver a situação de centenas, ou melhor, milhares de jogadores aposentados que vivem, não raro, à beira da miséria).

Não só isso (como se já não fosse muito): os mesmos donos apostam, apenas, no resultado esportivo, imediatista, para que, enquanto titulares de mandatos político-esportivos, possam usufruir do pequeno (grande) poder que somente um sistema clubístico, de origem contemporânea à escravidão, lhes proporciona.

O futebol poderia contribuir para conexão entre as perspectivas das gentes menos favorecidas com as das mais privilegiadas, e promover a integração humanística que, desde a invasão portuguesa, não se realizou.

O problema é que a união desses dois mundos, adotando-se as palavras do acadêmico, implicaria, na míope (ou egoísta) visão de quem olha para seus interesses (ou de seus comparsas), a pavimentação ou a iluminação de um caminho de igualdade, de questionamento e de mudança.

Por esses motivos as palavras de Daniel Alves incomodam. Não se quer formar cidadão; apenas jogador, para satisfação dos anseios das massas, as mesmas que normalmente o esquecem ao final do contrato esportivo com o clube.

E por esses motivos Daniel Alves vem sendo – e continuará a ser – fuzilado pelo Esquema.

Ah, e para que não se façam ilações sobre o sentido ou o emprego do vocábulo esquema, a resposta está no livro Não verás país nenhum.

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1 Não verás país nenhum. - 28. ed. – São Paulo: Global, 2019, p. 142.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.