Meio de campo

O papel da sociedade e da imprensa no enfrentamento do desmanche do futebol brasileiro

O papel da sociedade e da imprensa no enfrentamento do desmanche do futebol brasileiro.

9/12/2020

Longe de mim, num momento de arroubos obscurantistas como o que se vive atualmente, produzir um texto ou defender uma ideia que possa parecer ofensiva à liberdade de imprensa.

O propósito deste texto é o oposto. Porém, se pretende, a partir dele, fazer uma provocação: a estrutura do futebol já poderia ter mudado se uma pequena parte do tempo que se dedica ao tratamento de impedimentos e lances polêmicos de campo fosse atribuída ao debate, pela grande mídia, de modo recorrente e insistente, dos temas da propriedade, governação e controle da atividade futebolística.

É verdade que a imprensa escrita se debruça, com alguma frequência – mas não de modo organizado ou planejado –, e há muito tempo, sobre tais temas.

O problema não é de censura, pois. Parece ser, por outro lado, de interesse – ou de prioridade; ou melhor, da falta deles.

Não se nega que, quando um evento ou um fato político, atrelado ao futebol, exsurge, a reação é imediata. Foi assim com a apresentação, pelo então Deputado Federal Otavio Leite (PSDB/RJ), do PL 5.082/16, que criava a sociedade anônima do futebol (SAF).

Também foi assim com os movimentos do Deputado Federal Pedro Paulo (DEM/RJ), indicado para relatar e apresentar substitutivo àquele projeto, que resultaram no PL 5.082/16-A, aprovado pela Câmara dos Deputados em novembro de 2019 (e na sequência remetido ao Senado Federal).

E não foi diferente com o PL 5.516/19, que inaugura o Sistema do Futebol Brasileiro, mediante a tipificação da SAF, o estabelecimento de normas de governança, controle e transparência, a instituição de meios de financiamento da atividade futebolística e a previsão de um sistema tributário transitório, apresentado em outubro de 2019 pelo Senador da República Rodrigo Pacheco (DEM/MG).

Porém, após repercussões imediatas, ou algumas um pouco mais resilientes, o acompanhamento arrefece ou desaparece, para deleite dos pouquíssimos agentes que mandam, há décadas, no futebol brasileiro – e o querem fragilizado, exatamente como está.  

De volta, pois, à cobertura cotidiana das relações internas e externas de times e jogadores, e sobretudo de jogos, copas e campeonatos; torcedores e a sociedade em geral se deparam com crises localizadas e generalizadas, que abalam a confiança e a credibilidade sistêmica.

Mesmo quando aparece um evento excepcional – como ocorreu recentemente com o Palmeiras, inundado de recursos interessados na formação de um time protagonista, ou com o Flamengo, que estarreceu o País com receitas da ordem do bilhão de reais e a conquista de quase todos os títulos que podia conquistar em uma temporada –, não se cria, desafortunadamente, um movimento de ajustamento estrutural.

E aí se revela o óbvio: a efemeridade de tais períodos de dominação resultam de fatores conjunturais, que o tempo cuida de corroer.

O efeito corrosivo provoca a sensação da perda de oportunidade de adotar um novo modelo, que pudesse, de algum modo, aproximar as práticas locais das mais desenvolvidas e reconhecidas práticas adotadas nos países europeus. Trata-se, apenas, de sensação; afinal, a lamentação é rapidamente esquecida pelo noticiário esportivo.

Times em crise profunda, como Cruzeiro e Botafogo, para citar apenas dois dentre dezenas, com tradição regional ou nacional, também suscitam, sempre que um fato negativo se sobrepõe, os equívocos passados e a necessidade de mudanças.

Nesses momentos, de crise extrema, o interesse coletivo costuma se avolumar, para logo recobrar o esquecimento.

O clube cruzeirense, para usá-lo como exemplo, não se pode esquecer, passou de protagonista máximo, uma máquina de ganhar títulos, às páginas de notícias criminais, e, como símbolo da podridão que se expandia, durante inclusive os anos de glória – uma alusão ao personagem Dorian Gray, de Oscar Wilde, parece inevitável –, caiu à segunda divisão, onde luta para se manter com alguma dignidade. 

Em um ou dois anos deverá voltar à série principal e aí, seguindo-se o padrão recorrente, narrativas se construirão para exaltar a superação e os ídolos que terão participado do processo de soerguimento. Mas, internamente, a podridão, extensível a praticamente todos os demais times, persistirá.

Assim tem sido, aliás, desde sempre; e é disso que o presente texto, talvez sem muito êxito, pretendia tratar.

O sistema brasileiro apodreceu e não há, tal como estruturado, remédio que o recupere. Seu salvamento depende de uma nova estrutura, que substitua os alicerces carcomidos por décadas de desmandos, irresponsabilidades, confusões patrimoniais ou de personalidades, e outras coisas mais.

E seria o salvamento do futebol irrelevante ou pouco interessante, para sociedade e torcedores em geral?

A existência, apenas no Brasil, de aproximadamente 150 milhões de seguidores (incluindo os eventuais), não deveria motivar uma outra relação com essa prática esportiva?

Os atributos que o alçariam a vetor de desenvolvimento econômico e social, como, talvez, nenhuma outra atividade humana, não justificariam uma política de Estado, a ser implementada e continuada por governos, no interesse do povo e da Nação?

Esses elementos todos, reunidos, não mereceriam uma cobertura permanente da mídia brasileira?

Se a sociedade não exigir respeito ao que lhe pertence, se o torcedor não exaltar a preocupação com a necessidade de um sistema sadio e gerador de riquezas (esportivas e econômicas, que alimentarão o próprio sistema e contribuirão para o incremento de resultados e experiências) e se a imprensa não se interessar, como se interessa, pelos sinais exteriores da indústria, não haverá reversão do processo de desmanche ou desmantelamento do futebol brasileiro.

Partindo-se, assim, da premissa de que reina a determinação por um modelo inclusivo, capaz de corrigir distorções e de reinaugurar uma atividade pujante, não se consegue entender os motivos pelos quais, desde o surgimento dos primeiros sinais de aproximação e convergência entre os projetos de lei 5.082-A/16 e o 5.516/19, a reverberação não correspondeu à importância do fato (que poderia ser histórico).

Talvez se trate mesmo de uma batalha "brancaleônica", ou de uma utopia, pois combatida contra as estruturas mais retrógradas e dissimuladas, remanescentes do período pré-republicano.

Mas de nada adiantará reclamar, no presente ou no futuro, das mazelas do futebol, se se continuar a ignorar a relevância do tema – e de suas soluções. E não adiantarão também as lágrimas do torcedor, pela decadência (e eventual insignificância esportiva) de seus times.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.