A partir de 1850, foram promulgadas, no Brasil, leis que refletiam pressões internas e externas para abolir a nefasta prática da escravidão. As promulgações a conta-gotas revelaram, no entanto, a resistência imposta pelas classes dominantes, proprietárias de escravos e que se veriam espoliadas de valiosos ativos.
Consumiram-se, assim, quase quatro décadas, desde a lei proibidora do tráfico humano, passando pela lei do ventre livre, de 1871, e pela lei do sexagenário, de 1885, para que, enfim, se abolisse a escravatura.
Com efeito, a lei 3.353, de 13 de maio de 1888, conhecida como Lei Áurea, estabeleceu, em seu art. 1º, a extinção da escravidão no Brasil. O segundo e último artigo do diploma, sancionado pela Princesa Isabel, revogava as disposições em contrário.
A singeleza do texto legal também revela a natureza formal – e a displicência (ou melhor, o reflexo da inevitabilidade, decorrente de pressões mundiais) – da iniciativa. Apesar da libertação de centenas de milhares de pessoas, faltavam, no texto legal, a diretriz e a intenção de recepcionar e inserir os libertados na sociedade.
As consequências daquela política se projetaram por muitos e muitos anos; aliás, ainda são sentidas, nos tempos atuais, sob diversas formas, como no relacionamento desigual entre as classes economicamente privilegiadas e as menos favorecidas.
No futebol, as tensões se iniciaram logo na sequência dos embates humanísticos que marcaram a virada do século retrasado.
Em sua origem, tratava-se de atividade elitista e amadora, mas igualmente segregacionista em relação, primeiro, às pessoas oriundas de classes trabalhadoras e, depois, aos atletas profissionais que entregavam o suor em troca de recursos para sustento próprio ou familiar.
À medida em que a prática futebolística se popularizava e não se havia como impedir a sua propagação, clubes associativos se organizaram ou se reestruturaram para competir em níveis mais elevados.
No topo das organizações situaram-se, em geral, os herdeiros das classes mais abastadas, que comandavam os filhos, netos ou bisnetos, diretos ou mestiçados, daquela gente libertada anos (ou décadas) atrás.
Por obra do modelo organizacional mundial, adotou-se, também no Brasil, sistema que reproduzia, sob a proteção institucional, uma espécie de escravidão esportiva, caracterizada pela vinculação inquebrantável do atleta com o próprio clube. Novamente, o ser humano foi coisificado, e ativado na contabilidade clubística, também com base legal.
Apenas em 1998, 110 anos após a Lei Áurea, uma nova lei libertadora, dessa vez assinada por um negro, Pelé, pôs fim ao chamado “passe”: instrumento impeditivo da livre circulação de profissionais por iniciativa de seus donos. Venceu-se, assim, mais uma etapa do processo de humanização da sociedade brasileira, iniciado, por vias legislativas, como se apontou acima, em 1850.
Ocorre que, se a Lei Áurea não refundou as bases da sociedade brasileira (como deveria ter feito, caso tivesse implementado uma verdadeira libertação, equalizadora das graves mazelas que castigaram aqueles que antes eram escravizados pela lei, e hoje o são pela sociedade), a Lei Pelé também não abalou a estrutura político-clubística, que logo se acomodou, cercada de negociantes de jogadores, sob a suposta proteção constitucional da autonomia organizativa absoluta das associações.
Essa fórmula vem se revelando fatal para o futebol – e para o País.
O caminho para reversão consiste no aprimoramento (e correção) das iniciativas iniciadas com Zico, em 1993, e continuadas por Pelé, em 1998.
Mas é sempre bom registrar: ambas as leis foram dotadas de comandos meramente formais, e desprovidas de conteúdo apto à formação de um novo sistema, preservador do futebol (como expressão máxima de nossa cultura) e, ao mesmo tempo, atrativo ao investidor.
Nesse sentido, abusou-se de um falso dilema, que consistia na obrigatoriedade, ou não, de transformação do clube em empresa, e com isso se evitou o verdadeiro problema, que era a proposição e criação do ambiente adequado para recepção dos clubes transformados – via natural, aliás, de expurgo do cartolismo.
Foi por esses motivos que os donos do futebol puderam, publicamente, apoiar algo que, sabiam, não daria certo; e, logo após a promulgação de cada uma das leis, empreenderam esforços para, diante da ineficácia, reformar as ideias progressistas nelas contidas.
Passadas algumas décadas, durante as quais o Brasil assistiu, apático, à transformação da estrutura organizacional dos principais times de futebol do planeta – e foi conivente com a apropriação de sua riqueza por uma casta despreocupada com a sociedade e com os torcedores, e preocupada sobretudo com a satisfação de interesses particulares –, ecoam do Congresso Nacional notícias realmente animadoras.
Parece mesmo que se aproxima, enfim, o necessário processo de convergência entre os Projetos de Lei 5.082/16, do Deputado Federal Pedro Paulo (DEM/RJ), e 5.516/19, de autoria do Senador da República Rodrigo Pacheco (DEM/MG), ambos em tramitação no Senado Federal, em consonância, ao que tudo indica, com a preocupação também externada pelos Presidentes de ambas as casas Congressuais, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, com o futuro do futebol brasileiro.
Essa lei, com as convergências que se projetam – que criará um sistema sem precedentes no planeta, e terá, em seu núcleo, o clube-empresa, expressão adotada para designar a sociedade limitada, a sociedade anônima e a sociedade anônima do futebol (SAF), e ao seu redor instrumentos de recuperação e financiamento da empresa futebolística, regime tributário transitório, técnicas de parcelamento de obrigações, forma de administração unificada do passivo trabalhista, mecanismos de estímulo à educação por meio do futebol, e modelos progressivos de governança e controle – poderá libertar o futebol de um aprisionamento indefensável e injustificável sob qualquer prisma.
Exceto o prisma dos cartolas, que ainda tentam – apesar da destruição que causaram - se apresentar como guardiões dos interesses dos torcedores, para, na verdade, preservar seus privilégios seculares.