Meio de campo

A oportunidade de o Congresso Nacional devolver ao povo o que é do povo: o futebol

A oportunidade de o Congresso Nacional devolver ao povo o que é do povo: o futebol.

21/10/2020

Toni Morrison (1931-2019) foi a primeira mulher negra a ser agraciada com o prêmio Nobel de literatura, feito ocorrido em 1993.

Pelas suas origens, teve que abrir portas e mais portas para atingir a glória, sem que a abertura implicasse, desafortunadamente, uma via de acesso para outras pessoas que, depois dela, tentassem trilhar o mesmo (ou semelhante) caminho.

Sua luta, aliás, sintetiza-se, com as suas próprias palavras, extraídas do livro "A origem dos outros", da seguinte forma: "(...) dar continuidade ao projeto humano, que é permanecer humano e impedir a desumanização e a exclusão dos outros"1.

Sua obra e seus propósitos não poderiam ser mais atuais.

Poucos foram os momentos – e ainda assim geralmente marcados por hostilidades declaradas (i.e., guerras, externas ou internas) – em que o desprezo pelo destino do próximo incorporou-se, sem acanhamento, ao discurso oficial, como ocorre atualmente.

Ademais, supostos representantes do povo, eleitos por ele e para implementar suas vontades (do povo, portanto), usurpam o poder e atuam em benefício pessoal – e de seu círculo íntimo – sem uma verdadeira preocupação com o ser humano ou com o planeta. Não à toa, o editorial do New York Times anotou, em relação ao Presidente Donald Trump, que ele "has subsumed the public interest to the profitability of his business and political interests"2.

Às favas, assim, com os outros, exceto se forem úteis para alcançar propósitos pessoais. Daí ele ter revelado, continua o periódico, "breathtaking disregard for the lives and liberties of Americans" (e ainda muito maior pelas dos estrangeiros, esses outros que nada valem para o presidente estadunidense, se não proporcionarem uma contrapartida lucrativa). 

Diante desse cenário de coisificação das pessoas, ou dos outros – que também se revela no Brasil pandêmico –, a indignação silenciosa ou passiva deve dar lugar à indignação transformadora, por vias institucionais, de modo a afastar condutas, que não são novas, mas que se descortinaram ou se expuseram, sem disfarces, nos tempos atuais.

Essa narrativa, como um todo, se estende ao futebol. A começar pelo histórico preconceito, tanto em relação à sua identificação com as coisas do povo, quanto com a supremacia negra ou mestiça em sua prática (que contrasta com a propriedade da empresa futebolística, exercida quase que exclusivamente por homens brancos; talvez não por coincidência, mas reflexiva de posições históricas que resistem no tempo).  

Mesmo que um jogador seja reverenciado pelos seus feitos esportivos, sua inserção na sociedade preponderantemente branca, caso ocorra, costuma ser implacavelmente revisada e rejeitada ao menor sinal de fraqueza. Neymar, neste sentido, jamais teve a aceitação que merece, por não se submeter aos requisitos idealizados pela elite econômica e cultural.

A falta de preocupação com o jogador, ou com o ser humano, exceto enquanto animador das tardes de domingo, também se expressa pela ausência proposital de políticas públicas efetivas, associada à falsa percepção de riqueza coletiva entre os praticantes do esporte.

Nada mais irreal.

Com efeito, apesar de relatório da FIFA3, contendo os números de transações ocorridas em 2019, indicar que: (i) do total de 18.042 negócios, 1.988 envolveram brasileiros (mais do dobro do segundo colocado, os argentinos, com 946); e (ii) geraram US$ 925 milhões; a remuneração do jogador em atividade no Brasil apresenta as seguintes características4:

(a) 55% recebem até R$ 1.000,00;

(b) 33% recebem entre R$ 1.001 e R$ 5.000

(c) 5% recebem entre R$ 5.001 e R$ 10.000;

(d) 4% recebem entre 10.001 e R$ 50.000;

(e) 1% recebe entre R$ 50.001 e R$ 100.000;

(f) 1% recebe entre R$ 100.001 e R$ 200.000;

(g) 1% recebe entre R$ 200.001 e R$ 500.000; e

(h) 0,1%5 recebe acima de R$ 500 mil. 

Se, de um lado, os clubes dependem daqueles negócios – exportação de jogadores – para não terem contas de luz e telefone cortadas, de outro se mascara, na verdade, um subproduto, facilitador de transações e comissões milionárias, que não se revertem ao sistema.

O futebol brasileiro pertence a poucos, os mesmos poucos que se beneficiam da incapacidade daquela atividade de se tornar relevante econômica e socialmente.

Pior: os donos do futebol tentam reforçar suas posições com projetos de lei oportunistas, que envolvem desde novos programas de ajuda financeira à conta dos recursos dos contribuintes, até a famigerada MP do mandante (idealizada apenas para armar determinado clube, em guerra com certo grupo midiático).

Em um país como o Brasil, abençoado pelo atributo futebolístico, que poderia funcionar como instrumento de inserção social e distribuição de renda, o povo não pode mais silenciar. Assim como o Congresso Nacional não pode fazer de conta que o tema é irrelevante. Não é. Ao contrário: abrange aproximadamente 150 milhões de torcedores, dentre os eventuais e os permanentes, que se encontram curvados diante de um modelo desumano e excludente.

A relevância justifica, pois, o esforço republicano de convergência e consolidação dos projetos de Lei 5.082/16, relatado pelo Deputado Federal Pedro Paulo (DEM/RJ), e 5.516/19, de autoria do Senador da República Rodrigo Pacheco (DEM/MG), ambos em tramitação no Senado Federal, para entrega, ao povo – e não à casta cartolarial –, do novo marco regulatório organizacional do futebol brasileiro.

E, assim, devolver ao povo o que é do povo.

__________

1 A origem dos outros: Seis ensaios sobre racismo e literatura; tradução Fernanda Abreu; prefácio Ta-Hehisi Coates. – 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 62. 

2 Disponível aqui.

3 Cf. FIFA Global Transfer Market Report 2019. Disponível aqui.

4 Cf. Relatório de Impacto do Futebol Brasileiro (CBF/EY).

5 Esse número deve reduzir os anteriores, para arredondamento da centena. 

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.