A canção Homem na Estrada, do grupo de rap Racionais MC's, não perde, infeliz e dramaticamente, a atualidade. Construída sobre uma base que remete à canção Ela Partiu, de Tim Maia, narra a trajetória de um ex-presidiário negro que, após recuperar a liberdade, pretende reconstruir sua vida e dizer ao crime nunca mais.
As condições para reconstrução revelam-se, no entanto, inexistentes. Além da falta de estrutura para iniciação de uma vida digna, como moradia e saneamento básico, foge-lhe o essencial: a compreensão e a compaixão; sentimentos que deveriam nortear qualquer relação humana.
A narrativa também serve para lembrar e relembrar fatos históricos – apesar de nefastos -, que permanecem expostos e corroem o tecido social. A Lei Áurea não foi capaz de oferecer igualdade material, apenas formal. Aliás, quando se reavaliam as forças que a impulsionaram, conclui-se que não era mesmo o seu propósito.
Assim, a partir do ideal burguês de liberdade, escravos foram largados, em geral, à própria sorte, sem recursos, eventualmente sem roupas, sem comida, sem apoio, sem trabalho e sem perspectiva de inserção social; enfim, sem compreensão e envolvimento do sistema. Mas estavam livres para concorrer com os bem formados integrantes das classes dominantes.
Respeitadas as peculiaridades, encontram-se, porém, similitudes nos dramas do escravo liberto e do presidiário libertado: a manutenção da estratificação colonialista, não como fato político, mas sociológico (e econômico).
Essa constatação também ajuda a explicar o preconceito da sociedade brasileira com o futebol e a resistência a transformá-lo em instrumento de inserção.
Não custa relembrar, mesmo que o tema tenha sido tratado recentemente nesta coluna, que a origem do esporte, em sua forma contemporânea, não tem nada a ver com o brasileiro: organizou-se em países europeus, sobretudo na Inglaterra, como atuação elitista, hermética e de natureza amadora.
Foi a indesejada popularização que forçou a profissionalização, atraindo pessoas que identificaram na prática futebolística uma forma de sobrevivência – além, eventualmente, do amor ao jogo – e passaram a se dedicar com exclusividade à evolução física e tática.
A história do futebol no Brasil apresenta certa semelhança. Após sua introdução por representantes das classes dominantes, caiu rapidamente no gosto popular e se transformou, em decorrência de espontâneo movimento antropofágico, em paixão nacional.
Por quais motivos, então, deixou de ser introduzido na agenda prioritária do Estado e permaneceu fora do radar dos governos - independentemente da ideologia política -, exceto para aparelhar medidas populistas ou oportunistas?
O ponto de partida é a Constituição Federal.
O modelo de autonomia associativa, que deveria servir como proteção aos excessos estatais cometidos durante a ditadura, revelou, inversa e rapidamente, sua disfunção: a apropriação do futebol – e do futebolista – pela classe cartolarial, encastelada e protegida por argumentos constitucionais.
A tentativa de reparação do equívoco foi relativamente rápida, inicialmente por ocasião da Lei Zico, introdutora da permissividade à transformação do clube em empresa ou da criação de empresa pelo clube, e, na sequência, da Lei Pelé, que foi além, passando da permissão à obrigatoriedade.
A contrarreação também não tardou: a lei "não pegou" e, na esteira de sua ineficácia, foi reformada para reintrodução de norma meramente permissiva.
Com isso, manteve-se o sistema de privilégios e de dominação gerencial (ou cartolarial), responsável pela decadência, no País, de atividade que atrai, no planeta, aproximadamente 4,5 bilhões de pessoas e movimenta dezenas de bilhões de dólares.
Ocorre que a situação falimentar dos clubes e do esporte não condiz com os benefícios extraídos pelos agentes que sustentam e dominam o sistema: poder, prestígio, fama, contatos, acesso a eventos e pessoas, viagens e, eventualmente, dinheiro.
Expõe-se, portanto, o conflito de interesses, que se intensifica (ou solidifica) porque o cargo de cartola representa um valioso ativo subjetivo, que contribui para manutenção de poderes locais ou para ascensão política e social.
Mesmo assim, os donos do futebol o maltratam desavergonhadamente.
A aparente contradição se explica, com alguma facilidade, pelas lentes da história: o ativo ser humano (objeto da escravidão) também era maltratado, dele extraindo-se a maior utilidade possível enquanto mantivesse energia para, depois, ser descartado – quem não se lembra, aliás, sob outro prisma, da tortura laboral imposta pelo porco Napoleão ao cavalo Sansão, na obra crítica do comunismo, Animal Farm, escrita por George Orwell?
Pois é a mesma ideia: extrair, usar e explorar ao máximo o clube e o futebol durante o mandato, sem preocupação com as consequências – e com o seu futuro.
Aí se encontram os motivos do maltrato; e aí, também, o modelo confessa seu esgotamento.