O mês de agosto trouxe, além do início do Brasileirão 2020, a assinatura do decreto presidencial que qualifica as apostas esportivas de quota fixa no PPI (Programa de Parcerias de Investimento) com a sua inclusão no PND (Plano Nacional de Desestatização), criando assim condições para a futura regulamentação de uma nova fonte de receita que, se bem gerida, pode compor com perenidade os orçamentos dos clubes.
Claro, esse foi apenas o "pontapé inicial"; até o alcance de uma modelagem, a sua complexa implementação e a percepção de dividendos, tem muito jogo pela frente, nada é tão simples em ambientes como o futebolístico e o estado brasileiro, mas se trata de uma rubrica com grande potencial de incremento, na casa do bi, acredite-se...
De uma tacada só, além das potencialidades de ganho advindas do mercado de apostas, temos também outras fichas sobre o pano verde, como a procurada convergência entre dois projetos de lei que versam sobre organização empresarial das associações esportivas e a MP dos direitos de transmissão, proposições que ao lado do que tratam seu pano de fundo, trazem o relevante fato de jogar luz nos acontecimentos, ao menos combatendo a letargia e instigando movimentação.
Com o futebol agora vivendo, a exemplo do país, ligado no modo "dane-se", para todos e para tudo o "novo normal" se acomoda com as restrições, mudanças de hábitos e costumes, aperto financeiro, num jeito disfarçado de se ver a vida como sendo novidade, a partir daquilo que no momento nos é disponível. Mas o passado, ah, o passado... este nos é sempre indissociável.
Cartolas de início atordoados pelas circunstâncias, em verdade encontraram suas bengalas com a deflagração da crise, e enquanto curam pela própria sobrevivência amparados por força dessa justificativa "lato" para tudo, deparam-se no horizonte com uma miríade: MP 984, decreto das apostas, clube empresa, liga, o recorrente tema do "profissionalismo"...
Claro que a crise atual afetou, mas não proporcionalmente ao estrago que já existia no caótico modelo de gestão associativo, refletido fundamentalmente no estrangulamento dos caixas e na incapacidade de investimentos, mazelas que tocam toda a cadeia de agentes (clubes), desde as maiores e mais performáticas receitas até os menores orçamentos; a pandemia pode ter ferido de morte, mas é fato inequívoco que já não havia desde antes aptidão financeira para nenhum clube do Brasil satisfazer minimamente suas obrigações.
Estando em voga neste momento temas como reflexão, reposicionamento, enfrentamento e superação de adversidades, evidencia-se oportunidade propícia para que os clubes de forma coletiva se cotizem, no sentido literal do verbo, em busca do encontro de modelos e soluções.
O primeiro passo, pois, seria os clubes conjuntamente concluir, sem esforço, que nosso futebol não tem solução de curto prazo. Ponto. Eventual planejamento estratégico, nestas condições, tem que ser idealizado para médio e longo prazos. Um bom marco, "de trás para frente", poderia ser considerado o vencimento dos direitos de transmissão em 2024, para então se definir passo a passo até aquela data, de maneira programada e planificada, como seria viável evoluir para a consolidação de um mercado futebolístico que traga na prática um modelo sustentável e exitoso para o negócio sob todos os aspectos, seja esportivo, social ou financeiramente falando.
Para tanto, e aí o segundo passo, há de se buscar respostas para indagações nunca enfrentadas à saciedade, entre as quais: mas afinal, qual é esse mercado? E seu tamanho? Até pode parecer aqui uma provocação simplista, mas não é! Não terá chegado a hora de uma vez por todas ser perquirido de modo efetivo um valuation do negócio “pra valer”, para que se possa entender de qual mercado estamos falando, de quanto ele vale, e sobretudo qual é a participação de cada um (clubes) no seu contexto? Sim, para ficar fácil a visualização, quando se fala em comprar um imóvel, por exemplo, antes do preço não procuramos sempre saber qual é a sua avaliação?
“Mutatis mutandis”, é isso que estamos propondo: podemos cravar com convicção que a análise verdadeira do segmento traduzirá a pedra de toque para qualquer encaminhamento posterior, tanto nos casos individuais como coletivos, com o fito da defesa dos interesses das associações esportivas em face de contratos, direitos, organização de competições, novos negócios, etc..
O processo de valoração, antes de tudo, significa ampla compilação de dados, levantamento de informações estratégicas e classificação de receitas, identificando os requisitos necessários para a possível transformação, na acepção jurídica do termo, do regime associativo para o modelo empresarial (seja ele qual for); além disso, a consolidação dos pontos de aderência permitirá melhor assimilação deste mercado por toda a comunidade futebolística, servindo também como elemento motriz para o processo de conhecimento necessário ao enfrentamento das questões domésticas, como reformas estruturais e estatutárias a ser desafiadas por cada qual dos clubes.
O terceiro passo, pois, será “organizar a conversa”, o que deve se dar individualmente nos seus ambientes internos e sobretudo em grupo para estabelecimento de posições destinadas a todas as frentes passíveis de negociação, afinal, não se vira uma empresa operacional sem a prática de uma sequência de atos e adoção de diversas providências no tempo, aqui sós, nem tampouco sem a definição do mercado real para desenvolver e performar o negócio, aqui em conjunto.
Vale lembrar que estudos e conclusões serão ainda veículos para atender todas as interlocuções necessárias (em alguns casos obrigatórias) com grupos econômicos, entidades, federações, imprensa, especialistas, além, principalmente, daquelas que serão travadas no seio das próprias coletividades integradas por associados, torcedores, conselheiros e diretores.
A tarefa interna é árdua, não olvidemos... esbarra em uma série de resistências, a começar pela própria questão cultural: como foi tão bem pontuado por Franklin Foer em seu "Como o Futebol Explica o Mundo", os norte-americanos chamam os seus clubes desportivos de "franquias", os brasileiros jamais tolerariam o uso desse termo; tem muitas associações com organizações comerciais, como cadeias de lanchonetes e lavanderias... em vez disso, os brasileiros chamam seus times de clubes, pois a maioria deles realmente o é (*); sim, o torcedor e as coletividades em geral sabem exatamente o quanto o "clube é e sempre será seu", mas não conseguirá dizer o mesmo de uma empresa, daí a primeira dificuldade no processo de convencimento. À luta!
Falar em impossibilidade no curto prazo em meio a pandemia é algo mais do que palatável, na medida em que o "normal" está adiado; o médio prazo, termo inicial para as mudanças, está logo ali, enquanto o longo prazo pode ter tudo para ser breve, racional e profícuo, mas demanda ações imediatas que só poderão ser inauguradas com o efetivo "conhecimento do problema".
O tempo, como já diz o velho brocardo e todos nós tão bem sabemos, é o "Senhor da Razão"!
(*) Como o Futebol Explica o Mundo, Franklin Foer, JZE Editora, 2004, pág. 106.
*Savério Orlandi é advogado em SP, pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC/SP, onde também se graduou. Membro do CD e do COF da Sociedade Esportiva Palmeiras e da ABEX.