Meio de campo

Pau-Brasil, diamante, ouro, café, borracha e futebol

Pau-Brasil, diamante, ouro, café, borracha e futebol.

2/9/2020

No livro Guns, Germs, and Steel – The Fates of Human Societies, Jared Diamond, ganhador do Prêmio Pulitzer, desenvolve importante teoria a partir de uma aparente simples pergunta, formulada por certo jovem político de Nova Guiné, com o qual manteve rápida conversação no início da década de 1970.

Yali – o interlocutor – queria saber o motivo pelo qual as sociedades brancas desenvolviam tanta mercadoria (“cargo”) e a desovavam na ilha em que ele vivia, mas a população negra local detinha tão pouca mercadoria própria, para consumo ou para comercialização.

A dúvida se estenderia, segundo o autor – e com razão –, à formação do mundo moderno, dominado pelos povos europeus, leste-asiáticos e norte-americanos. A dominação, aliás, também abrangeria os povos que, outrora colonizados, lograram expulsar os colonizadores, mas permaneceram – e permanecem – dependentes, econômica, política e sanitariamente, sejam dos antigos, sejam de novos dominadores.

O problema, enfim, se colocaria, com outras palavras, da seguinte forma: por que a riqueza (“wealth”) e o poder são distribuídos com as características atuais, e não de outra maneira, mais igualitária ou com a inversão dos eixos de influência?

O autor investiga diversos motivos, tais como (i) iniciação prematura do processo de desenvolvimento político e tecnológico de determinados povos, (ii)  inevitabilidade da teoria eurocêntrica, (iii) seleção natural e supremacia do mais forte, (iv) genética e (v) influências climáticas (povos sujeitos ao frio, por exemplo, precisariam se dedicar ao desenvolvimento de soluções que lhes permitiriam enfrentar os rigores da natureza e, por ficarem mais tempo abrigados, dedicar-se-iam, com maior intensidade, ao pensamento e à solução de problemas cotidianos).

A partir das provocações do autor, uma constatação se torna inevitável: a produção e o acúmulo de mercadorias – ou o controle de capitais, de patentes farmacêuticas e de tecnologias, em geral –, que servem para afirmar as posições dos povos dominantes, viabilizam-se justamente pela dominação e apropriação das riquezas naturais ou da força de trabalho dos dominados (mesmo que levem à dizimação de povos nativos ou à situação análoga à escravidão de trabalhadores espalhados por regiões periféricas).

Foi assim, com sequelas milenares, desde o advento do Império Romano, passando por todos os que o seguiram, até os mais contemporâneos, com destaque para os imperialistas ingleses e, hodiernamente, norte-americanos.

No mesmo sentido, o Brasil sempre foi, desde a invasão portuguesa, fornecedor passivo. Entregou o pau-brasil, o ouro, os diamantes, o café, a borracha e as riquezas amazônicas, e, em contrapartida, adquiriu – e adquire – produtos acabados.

A cápsula de café, produzida por empresa transnacional, com insumos importados de países subdesenvolvidos, e exportada para todo o globo, que a consome como símbolo de status, é bom exemplo das absurdas inversões promovidas pelas desigualdades políticas e econômicas mundiais.

O futebol pode ser inserido nesse contexto.

Apesar de não ser uma criação brasileira, foi por aqui que evoluiu como (i) atividade (ou produto) indissociável da imagem de um povo e (ii) atributo de brasilidade. Integrou-se, assim, a uma rede de relacionamentos fundamentais nos planos sociais e econômicos, a partir, não se pode negar, da (i) formação de instituições, sem fins lucrativos, que assumiram a organização da prática futebolística e do (ii) surgimento, sobretudo por meios espontâneos, de jogadores em todos os cantos do País.

Reuniram-se, assim, os elementos necessários, em seu tempo, para fixação de relações inquebrantáveis com o povo e com o torcedor, que, pela importância, deveriam ter sido aproveitadas para fixação de uma necessária política de Estado, definidora da essencialidade do futebol como indutor da redução de desigualdades e do desenvolvimento social e econômico.

Aliás, quando os europeus perceberam essas potencialidades – que estavam e estão à disposição da sociedade brasileira –, passaram a investigar alternativas para suprir os arcaicos métodos históricos de organização, que se mantiveram no Brasil, e, mais importante, para mapear e explorar – para o bem e para o mal – o principal elemento de toda a indústria: o jogador.

Portanto, assim como fizeram com outros produtos encontrados nas terras invadidas desde a intensificação das grandes navegações, que se tornaram objeto de extração, exploração e desvio para cultivação em outros locais – criando-se, assim, um ambiente concorrencial de fornecimento de matéria-prima –, também o fazem com o futebol.

O jogador brasileiro passou à condição de commodity, negociado pelo seu formador (o clube associativo) ainda em estágio de incompletude, que será desenvolvido para se tornar produto de ponta europeu – ou seja, novamente para afirmar a supremacia dos povos dominantes.

As cifras que envolvem quaisquer movimentações de jogadores como Neymar e Messi – dentre muitos outros – confirmam a proposição.

Na verdade, não apenas o jogador, mas, em relação ao Brasil, seus times (ou clubes) se inseriram nesse sistema, ao assumirem a posição terceiro-mundista de meros fornecedores de “pé-de-obra”, ao invés de se posicionarem como agentes transformadores e criadores de tecnologia.

Por trás (e à frente) desse modelo, persistem os coronéis do atraso, integrantes da oligarquia cartolarial, interessada na preservação do seu poder, à conta do patrimônio material e imaterial do Brasil.

A história se repete, pois. Dessa vez, porém, não é o pau-brasil, o ouro ou a borracha que se entrega, sem a justa contrapartida; mas o futebol e os futebolistas.

 

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.