Texto de autoria de José Francisco C. Manssur
“Uma virtude simulada é uma impiedade duplicada: à malícia une-se a falsidade” Santo Agostinho.
Ditadura do associativismo é daquelas expressões que têm a qualidade de nos fazer enxergar, em poucas palavras, situações que demandariam longas e, muitas vezes, pouco eficazes explicações. O consultor Fernando Ferreira cunhou o termo e acertou na mosca.
O termo aplicado aos nossos grandes e tradicionais clubes de futebol brasileiros reflete o mais absoluto domínio exercido em nossos times, não por seus milhões de torcedores, mas por duzentos ou trezentos conselheiros eleitos por dois ou três mil associados do clube associativo. É uma ditadura, porque suprime dos verdadeiros donos dos times de futebol qualquer participação no processo decisório das associações, salvo raras e honrosas exceções. Como toda ditatura, é sustentada por uma oligarquia, uma pequena elite dominante que impõe seu julgo em desfavor da maioria dos torcedores que não são associados. No caso, uma cartoligarquia.
Nossos grandes times de futebol são, no mais das vezes, uma das – ou a única - atividade realizada pelas associações desportivas que são os clubes. É preciso diferenciar o clube associativo do time de futebol que o clube detém dentre as suas atividades. O clube associativo tem seus associados, donos de títulos patrimoniais, que lhes dão o direito de frequentar o clube e realizar as atividades esportivas recreativas e culturais. O time de futebol transcende os muros do clube, reúne, em alguns casos, dezenas de milhões de torcedores que, em muitos casos, passarão a vida toda dedicando sua paixão pela equipe de futebol, sua camisa, suas cores, seus símbolos, mesmo sem nunca terem sequer conhecido a sede social, frequentado a piscina ou comparecido à festa junina.
Os associados são os donos do clube e o poder é por ele exercido, na forma definida no Estatuto, com seus diretores e conselheiros. Já os donos dos times de futebol são seus milhões de torcedores, que geram as receitas essenciais para a sua subsistência, pagando os valores dos ingressos para os jogos, o que gera as receitas de bilheteria, ou o assistindo nas diversas mídias, o que produz o recebimento dos direitos de transmissão, assim como, consumindo notícias sobre o time nos sites, blogs e jornais, dando visibilidade às marcas dos patrocinadores que pagam ao clube por isso.
Os associados/conselheiros, com suas contribuições associativas, ajudam a manter a área social do clube (não do time) “e olhe lá”, já que, no mais das vezes, a sede social é deficitária e necessita de aportes vindos das receitas do futebol – aquelas geradas pelo torcedor – para se sustentar.
Logicamente que há uma maioria de associados e conselheiros que também ostentam a condição de torcedores e, como tal, exercem os dois papeis. Porém, somente em sua condição de conselheiros/associados, exercem em toda sua magnitude o poder político responsável pela gestão do clube associativo e também do time de futebol, alijando totalmente os torcedores não associados.
Nesse sentido, chega a ser infantil acreditar que um clube que substitui a eleição dos dirigentes pelos conselheiros, para eleição direta pelos associados passa a ser “democrático”. Falácia. Continuam sendo três ou quatro mil regendo a paixão de dezenas de milhões.
De quando em quando, a cartoligarquia aceita pequenas e pontuais mudanças, para mostrar um certo ar de modernidade, seguindo a orientação lampedusiana de mudar, para deixar tudo como está.
Assim, permitem, como se fosse grande concessão, que profissionais dirijam algumas áreas do clube como o marketing, a comunicação e as finanças e o próprio futebol profissional ou de formação. No mais dos casos, o fazem a contragosto e em postura de boicote ressentido, com duras e constantes críticas aos profissionais que atuam nos clubes. O cartoligarca, muitas vezes, enxerga o profissional do futebol como um “impuro”, conspurcado pelo “pecado” de trocar sua força de trabalho pela justa remuneração. São, assim, os sucessores dos velhos coronéis do interior do Brasil ou barões das capitais, donos de terra ou herdeiros, que nossa literatura colonial retrata tão bem, em punhos de renda e tratando os trabalhadores como “gente menor”.
O futebol brasileiro estaria muito melhor, se muitos dos magnânimos dirigentes tivessem a repulsa a alguns dirigentes pseudovoluntários, que sangram os cofres dos clubes cobrando comissões polpudas pela participação nos negócios realizados pelos clubes e não àqueles que trabalham e são justa e formalmente remunerados por isso.
Ouvi um dia, com esses ouvidos que a terra há de comer, de um dos grandes próceres da oligarquia clubística brasileira, ainda vivo, que “esse negócio de contratar treinador é bobagem, deveríamos juntar quatro ou cinco conselheiros e nós escalaríamos o time...” E já estávamos entrados no século XXI, quando testemunhei o propalar dessa “pérola”. Para além do absurdo folclórico, é comum ouvir pelos corredores dos clubes que conselheiros que defendem que a diretoria de futebol deva ser ocupada por quatro ou cinco conselheiros abnegados, que depois de seus afazeres diários iriam, no final do dia, dar “expediente” na sede e resolver todas as suas pendências. Como se fosse possível administrar futebol, marketing, finanças, comunicação de entidades com receitas maiores do que R$ 100 milhões, das 18:30 às 22:00 horas... não é por falta de sorte que o futebol brasileiro decaiu tanto nos últimos tempos.
A mais recente luta dos oligarcas é contra a separação da área social do clube do futebol profissional e a constituição de empresa para gerir o futebol profissional. Resistem com todas suas forças e poder político à percepção, cada vez mais assentada na sociedade, que sem essa modernização o futebol brasileiro não evoluirá. Seus métodos ditatoriais impedem, em alguns clubes, que até mesmo seja o tema discutido, como se fosse um dogma insuperável, em atitude típica das ditaduras que escondem as mensagens que lhes são desfavoráveis, não sem antes baterem no arauto.
Ainda assim, usam, como bem usa toda ditadura, das mais reprováveis estratégias de disseminação de falácias para convencer os associados a rejeitarem a mudança real. A mais recente e mais reprovável dessas mentiras é aquela por meio da qual os cartoligarcas avisam, como velhos oráculos, que “quem defende a empresa para gerir o futebol quer vender nossos clubes.”
Vender como, Sr. Barão, se no momento da criação da empresa o clube associativo é dono de 100% das ações da empresa que irá gerir o futebol e somente poderá permitir a compra de ações por terceiros se assim, o próprio clube, desejar e permitir de acordo com as normas previstas no Estatuto Social que os próprios Senhores Conselheiros & Associados aprovaram?
Há clubes, como o Botafogo de Ribeirão Preto e o São Paulo Futebol Clube, no qual o Estatuto Social prevê, expressamente, que o clube associativo sempre terá de deter, sempre a maioria do capital social no caso da constituição de empresa para gerir o futebol profissional. Isso só poderia mudar se o estatuto do clube permitisse e, somente os associados do clube, podem alterar seus estatutos. Logo a tese do “vão vender nosso clube” é mentirosa, fake news, que só serve para jogar areia nos olhos de quem se interessa pelo debate, em favor da manutenção de velhos poderes.
Ao invés de “vender”, acreditamos que o termo correto para definir a evolução do futebol dos nossos grandes clubes, para que sejam geridos por companhias seria “devolver”, assim entendido, como sendo o ato pelo qual se retira o poder de quem o exerce com abuso, para devolver em sua plenitude aos verdadeiros donos.
Para além da evolução por meio da qual os torcedores poderão vir a serem titulares de capital acionário dos times de futebol constituídos como empresa, já num primeiro momento, a gestão que substitui as barganhas e pressões políticas, pela resposta aos anseios do torcedor-consumidor democratiza e legitima a gestão. No futebol-empresa, os resultados financeiros resultarão da satisfação que o torcedor-consumidor manifestará em relação a forma como o clube é dirigido e aos resultados esportivos e financeiros alcançados.
O dirigente eleito por acordos políticos realizados pelos cartoligarca e cumpre mandato, somente se retirando ao seu final, exceção aos casos graves e raros que ensejam impeachment. O dirigente profissional, do clube-empresa, pode ser substituído a qualquer tempo, se os torcedores, seus verdadeiros patrões, não estiverem satisfeito com a condição do trabalho.
Cada vez mais, graças ao debate que se consegue fazer à margem dos muros dos grandes clubes, o ecossistema do futebol – atletas, treinadores, torcedores, imprensa e, por que não dizer, diversos conselheiros e associados dos clubes – passam a entender ditadura do associativismo, que restringe à uma pequena elite o exercício pleno do poder nos clubes associativos e, por conseguinte, nos times de futebol que os clubes detêm, é o fator preponderante para que a gestão do futebol brasileiro não evolua e se modernize, como deve, para fazer frente aos grandes clubes do Mundo.
Porém, por paradoxal que possa parecer, somente uma maioria de conselheiros e associados poderá mudar e modernizar a gestão em cada um dos clubes. Esses são os poderes que estatutos de clube e as leis criadas para manter o status quo legaram em favor dos cartoligarca e contra os interesses daqueles que acreditam na modernização real do futebol brasileiro.
Mesmo com os projetos que tramitam atualmente no Senado, de estímulo à constituição de empresas para gestão dos times de futebol de nossos clubes para criação de companhias para gerir futebol dos clubes, tal mudança fundamental somente poderá ser implementada a partir da aceitação, por parte daqueles que exercem o poder, de que as mudanças são necessárias para melhoria de suas instituições. Será preciso apelar para o torcedor que existe em cada dirigente. A História mostra que muitas ditaduras caíram, quando seus próceres abriram mão dos anéis, para salvar os dedos. No caso, abrir mão do pequeno poder, para salvar os grandes times de futebol do Brasil.
Que assim seja!
Abaixo a ditadura!