Texto de autoria de Rodrigo R. Monteiro de Castro e José Francisco C. Manssur
Há pouco mais de 10 anos, o Flamengo, de acordo com as palavras de seu então presidente, Marcio Braga, estava sem dinheiro. Apesar de a declaração ter sido proferida em contexto que envolvia esportes amadores, a verdade é que o clube, como um todo, ostentava situação financeira precária, que comprometeu o rendimento nos anos seguintes.
Aliás, sobretudo por esse motivo, os títulos importantes minguaram e se conheceu algo que não condiz com a sua história: a irrelevância. De 2010 a 2015, o Flamengo terminou o campeonato brasileiro nas seguintes posições: 14º, 4º, 11º, 16º, 10º e 12º, respectivamente.
Depois de Marcio Braga, veio uma presidente de matiz essencialmente político-clubístico, Patricia Amorim, que, após um mandato pouco iluminado, foi sucedida por Eduardo Carvalho Bandeira de Mello.
Bandeira de Mello expressa um arranjo de percurso; ou uma solução engendrada apenas para cobrir a impossibilidade de lançamento de outro candidato, que era preferido pela sua própria base política de sustentação. Por isso, ele deveria ter sido uma espécie de Rainha da Inglaterra, mas se afeiçoou imediatamente pelo cargo e pela perspectiva de conduzir o time mais popular do Brasil. Envolveu-se, assim, em disputas internas motivadas por sentimentos de traição, desconsideração e ressentimento; mas cumpriu, com dignidade, seus dois mandatos – sim, foi reeleito para segundo termo.
Mesmo que não fosse a primeira opção de seu grupo, Bandeira de Mello não era – e não é – uma pessoa despreparada; ao contrário, construiu sólida carreira no BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. E, a partir de sua presidência, iniciou-se – a verdade deve ser reconhecida – uma transformação interna no Flamengo que rompeu, ao menos aos olhos dos espectadores externos, com a forma exclusivamente politiqueira de administração clubística.
Em outras palavras, foram introduzidos conceitos e técnicas extraídos do mundo corporativo e afastados, não sem dificuldade, cardeais políticos e os seus asseclas parasitários. Isso não significa – é importante ressaltar – que houve rompimento com o modelo político-associativo; mas, dentro dessa matriz, passou a preponderar outro tipo de agrupamento – também político, é verdade, capitaneado por empresários e burocratas (na acepção positiva do vocábulo) -, que se aproveitou – e se aproveita – da fragilidade institucional para empreender um take over (ou uma dominação) da empresa-futebolística flamenguista.
Bandeira de Mello, pelo seu perfil burocrático – novamente, não se pretende, com isso, fazer-lhe crítica, mas apenas ressaltar essa sua característica –, conduziu o seu clube também de modo burocrático. A burocracia, no caso, foi benéfica e justifica, pelo menos em parte, o processo recuperacional financeiro e econômico, que se refletiu em campo. De 2016 a 2019, o time terminou o campeonato brasileiro nas seguintes posições: 3º, 6º, 2º e 1º.
O título de 2019, que não se obtinha desde 2009, foi levantado por seu sucessor, Rodolfo Landim. Apesar dos acertos em relação às contratações no primeiro ano de seu mandato, o atual presidente assumiu um clube aparentemente saneado e com capacidade para realização de investimentos e movimentos dignos do tamanho de sua torcida.
Ao contrário de seu antecessor, o conhecimento das burocracias estatal e empresarial não reflete a sua natureza. Mesmo tendo passado mais de duas décadas na Petrobras e alguns anos na presidência da Petrobras Distribuidora, o contato com as entranhas da empresa pública e do Estado proporcionaram a Landim o substrato para ascender na iniciativa privada. Eike Batista o convidou para "integrar a távola do sol eterno", e o fez presidente de algumas de suas companhias. A relação terminou em litígio.
Atualmente, Landim é maior do que o ex-patrão (que, aliás, chegou a ser o indivíduo mais rico do país): sim, ele preside aproximadamente 40 milhões de pessoas, número maior do que a população somada dos países do Benelux e de Portugal, e sabe que tem nas mãos uma preciosidade: a maior mina do Brasil – e talvez do mundo –, ainda subaproveitada e subvalorizada.
Para o seu melhor aproveitamento, Landim comanda (i) a reaproximação e a cumplicidade do Estado, (ii) o afrouxamento da influência do único agente que tolhe a ambiciosa pretensão dominadora – a Globo - e (iii) o engendramento de um pacto com a entidade administradora do futebol – a CBF –, que se protege e de algum modo se fortalece com as condutas individualistas flamenguistas, afiançadas pela Presidência da República.
Esses movimentos, por ora precisos e bem sucedidos, apequenam os demais clubes brasileiros, que são incentivados, pelo próprio presidente do Flamengo, a lutarem pelo escandaloso PL 2.125/2020, que oferece mais um programa de salvamento e premiação da irresponsabilidade cartolarial. Por trás do incentivo, esconde-se a necessidade de existência de sparrings que ofereçam alguma resistência, desde que não seja ameaçadora, e que legitimem a regência absoluta.
E, para que o poder econômico se estabilize, ou se intensifique – e sobretudo para que os seus planos de conquista não fiquem adstritos à América Latina – Landim e sua trupe sabem que, em algum momento próximo, deverão aplicar aquilo que sempre fizeram – e que sabem fazer – em suas atuações no mercado.
Ou seja, lançarem-se num projeto de empresarialização das atividades do clube, seja pelo futebol, seja por elementos que gravitam ao seu redor (como o programa de sócio torcedor), como via inaugural de acesso aos ilimitados recursos de investidores locais ou internacionais1.
Apenas por essa via é que poderão ser reduzidas as desigualdades que ridicularizam os times brasileiros – dentre eles o próprio Flamengo –, como revelou o jornalista Mauro Cezar Pereira, ao constatar que o festejado – e com razão – anúncio do fechamento de contrato de patrocínio do Banco Regional de Brasília (um banco estatal que despeja milhões em único time de futebol) –, equivale à cifra recebida, por patrocínio semelhante, pelo Burnley, inexpressivo time inglês que ostenta o 18º orçamento entre os 20 times da Premier League2.
Quando aquilo acontecer, a direção flamenguista, além de dar um passo fundamental para estabilização do poder empresarial, estará, pela miopia dos dirigentes dos demais clubes – com raras exceções -, executando o movimento final de dominação do futebol no Brasil. O hiato, que já é expressivo, tornar-se-á praticamente insuperável.
O associativismo, que o Flamengo defende publicamente, não passa de um escudo para que empreenda, de maneira silenciosa, uma revolução individual e egoísta, sem rivalidade ou ameaça – apenas eventual, de algum time que se beneficie do mecenato de um ou uns torcedores bilionários.
E, de quebra, se ocorrer durante a gestão do atual presidente, Landim ainda poderá mandar um bilhete ao seu antigo patrão e dizer-lhe que Rá – o Deus do Sol – é, na verdade, ele próprio.
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