Nesse momento de crise aguda, não bastasse a agregação de novos dramas e novas dificuldades a um país marcado pela desigualdade e pela corrupção, surge a necessidade de criação de mecanismos de proteção da coisa pública contra os oportunistas que pretendem se aproveitar de diferentes situações para obter benefícios pessoais ou para oportunizar ganhos aos grupos de interesses que representam.
No futebol, a situação é a mesma; e se manifesta, atualmente, sob duas perspectivas.
Numa, os agentes que dominam o ambiente político-clubístico empregam suas energias na reincidência de práticas parasitárias que objetivam transferir ao Estado e ao contribuinte o ônus da incompetência estrutural na gestão do futebol, pela via do perdão, do parcelamento e/ou do diferimento de obrigações tributárias; noutra, pretendem manipular o encaminhamento das reformas que tramitam no Congresso para lucrar com a introdução de mecanismos que, isoladamente, não modificarão o núcleo do poder – e gerarão, sobretudo, contratos e status.
O futebol, no Brasil, sempre foi marginalizado pela política oficial. A marginalização não decorre da ausência de relevância do esporte, mas da intencional manipulação daquilo que é um poderoso instrumento de comunicação com as massas e acaba servindo também como meio de apropriação de suas fontes de riqueza.
Trata-se, ademais, de atividade global, bilionária (em receitas, fãs, praticantes e outras referências) e que poderia – ou poderá – funcionar como (i) indutora de inserção educacional, (ii) catalisadora de transformações sociais e (iii) meio de desenvolvimento econômico; características que são, aliás, os princípios formadores do PL 5.516/19, de autoria do Senador da República Rodrigo Pacheco (DEM/MG) – que passa, nesse momento, por necessário e legítimo processo de convergência com o PL 5.082-A, de relatoria do Deputado Federal Pedro Paulo (DEM/RJ).
O potencial da atividade mais seguida no país – são aproximadamente 145 milhões de pessoas que a acompanham com maior ou menor intensidade o futebol, número que nem mesmo a eleição presidencial atinge – se revela na façanha de um clube outrora considerado regional, mas que, pelas suas competências, parece caminhar para o ápice do ranking latino-americano.
Se o Manchester City, time sem grande tradição, cuja verdadeira importância se resumia a uma rivalidade local com o Manchester United, transformou-se numa das cinco ou seis maiores forças mundiais (em 2017/2018, alcançou a quinta maior receita do planeta e, em 2018/2019, a sexta, de acordo com o relatório Football Money League, produzido pela Deloitte), o Club Athletico Paranaense ("Athletico"), a partir do momento que tiver acesso ao mercado de capitas, pode se transformar numa das cinco principais forças do futebol latino-americano (ou muito mais, até) – e, na minha opinião, somente não o será se outros times considerados grandes ou tradicionais (tais como São Paulo, Santos, Vasco, Botafogo, Fluminense, Inter, Grêmio, Atlético e Cruzeiro) imprimirem uma improvável e profunda transformação em seus modelos de propriedade da empresa futebolística e de governação.
Os resultados do Athletico no plano econômico já são notórios, e motivaram o Jornalista Juca Kfouri a publicar texto denominado "Athletico deixa Corinthians e São Paulo para trás", no qual se indica, com referência aos estudos realizados pela Pluri Consultoria, que 2019 foi o ano mais expressivo do time paranaense, com a produção da 6a maior receita do país (R$ 390.173.000,00).
O que talvez pouca gente conheça é que a estrutura comandada pelo presidente do Conselho Administrativo, Mario Celso Petraglia, também está comprometida com um programa social, que vai do assistencialismo à responsabilidade educacional. Por meio da Fundação Athletico Paranaense ("Funcap"), operam-se 211 escolinhas de futebol no Brasil e no exterior, muitas delas sem fins lucrativos, e, ainda mais relevante, caminha-se para conclusão, em 2022, da construção de uma escola profissionalizante, com ensino bilíngue, que (i) atenderá as crianças e os jovens integrantes das categorias de base, (ii) se estenderá aos mesmos grupos da comunidade em que ela (a escola) estará localizada e (iii) adotará, de acordo com Roberto Bonnet, diretor executivo da Funcap, sistema de ensino semelhante ao Waldorf.
Os resultados econômicos e os projetos inclusivos do Athletico, alcançados mesmo no âmbito de um ambiente jurídico forjado no século XIX e desconectado de seu tempo, reforçam a importância e a urgência das proposições de determinados incentivos, por meio de iniciativa legislativa em tramitação no Senado Federal, que poderão alçar a atividade futebolística brasileira a patamar de relevância condizente com os tamanhos de sua história, de sua mística e de seu público.
Nesse sentido, a Seção I do Capítulo II do PL 5.516/19 cria a debênture-fut: valor mobiliário a ser regulado pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM, que poderá ser emitida e ofertada ao público em geral pelo clube-empresa constituído sob a forma de sociedade anônima do futebol (SAF), e sujeitará os rendimentos auferidos por pessoas naturais residentes no País a imposto com alíquota zero, e por pessoas jurídicas ou fundos de investimento domiciliados no País ou por qualquer investidor residente ou domiciliado no exterior, a imposto com alíquota de 15%.
Em paralelo, a Seção II do mesmo Capítulo do referido PL institui o programa de desenvolvimento educacional pelo futebol, que autoriza a dedução, do lucro tributável auferido pela SAF, de montante equivalente ao dobro das despesas comprovadamente realizadas em determinado ano base, desde que empregadas em convênios devidamente aprovados que tenham como propósito (i) o incentivo à assiduidade dos alunos matriculados em escolas públicas, (ii) o envolvimento e o interesse dos alunos nas atividades educacionais promovidas pela escola pública e (iii) a contribuição para formação e capacitação dos alunos de escolas públicas.
Tais incentivos, inseridos num sistema arquitetado para construção de um modelo sustentável, eficiente, transparente e gerador de empregos, rendas e arrecadação, poderiam intensificar e acelerar o processo de nacionalização ou de internacionalização, conforme o caso, de times como o próprio Athletico, a partir da adoção de tipos societários viabilizadores do acesso a recursos financeiros locais e internacionais, e resgatar, pelos mesmos meios, os clubes regionais ou nacionais, pequenos ou grandes, que se transformaram, por conta dos equívocos e do sistema cartolarial, em administradores de massas falidas, e que resistem, sem cumprir suas funções sociais, educacionais e econômicas, apenas pela força de suas torcidas; situação incondizente, pois, com a magnitude ou com as potencialidades que deveriam expressar.