Texto de autoria de Carlos Eduardo Ambiel
Nos últimos dias circularam diversas notícias a respeito de recentes decisões judiciais reconhecendo a possibilidade de atletas profissionais usufruírem vantagens típicas de trabalhadores comuns, como o direito de descansar um dia na semana ou receber remuneração pelo trabalho noturno, em valor superior ao diurno.
E as reações foram as mais diversas: (i) atletas parabenizaram colegas pelo reconhecimento de vantagens conquistadas; (ii) torcedores reclamaram do "oportunismo" dos antigos ídolos, que rapidamente passaram a ser vistos como "ingratos", apenas porque tiveram a ousadia de demandar em face dos antigos clubes; (iii) dirigentes bradaram a necessidade de nova mudança da legislação, além de pedirem para suas equipes não mais serem escaladas para atuar em jogos aos domingos ou após as 22 horas.
Diante de tantas reações, alguns poderão imaginar que estamos diante de uma grande transformação nas regras, a ponto de impedir que se volte a assistir jogos de futebol aos domingos ou nas tradicionais rodadas de quarta-feira à noite. Mas, afinal, há realmente algo de novo na legislação capaz de exigir transformações nos antigos padrões de comportamento ou uma redefinição nos horários e dias em que poderemos voltar a assistir jogos de futebol? A resposta é negativa.
No Brasil, como regra geral, os atletas profissionais são empregados. Sendo assim, gozam de todos os direitos previstos no artigo 7º da Constituição Federal, além das disposições constante da CLT e da legislação previdenciária, exceção feita apenas aos dispositivos que forem incompatíveis com as prescrições específicas da Lei Pelé.
Há diversas especificidades que são cabíveis apenas para os atletas empregados, não se aplicando aos trabalhadores comuns, tais como a obrigação de os contratos de trabalho terem prazo determinado, a previsão de multas rescisórias muito acima da obrigação contratada, além da possibilidade de empregados atletas serem trocados ou emprestados livremente entre seus empregadores, a ponto de um atleta emprestado poder competir licitamente contra o próprio clube que o contratou e que paga seus salários, algo impensável sob a lógica da fidúcia que deve pautar a tradicional relação de emprego.
Por outro lado, também há uma equivocada percepção de que todos os atletas profissionais assinam contratos com valores milionários, têm fama mundial e fazem muito sucesso. Como diz a letra famosa: "quem não sonhou em ser um jogado de futebol". É diante desse irreal imaginário que pode soar incompatível a um atleta, com potencial de receber milhões a cada ano, ainda pretender receber hora extra, descanso semanal ou adicional noturno. Isso explica parte da revolta ou surpresa de alguns.
No entanto, quando se analisa a questões estritamente sob ótica jurídica não há novidade alguma no fato de atletas empregados também se beneficiarem de alguns dos mais tradicionais direitos trabalhistas. O descanso semanal, por exemplo, é uma antiga conquista presente em várias Constituições nacionais, que há décadas garantem o direito de todos os empregados poderem gozar um dia completo de descanso a cada semana, sem prejuízo da remuneração.
A Constituição de 1988 consagrou esse direito no inciso XV, do seu artigo 7º, declarando que o descanso será preferencialmente aos domingos. Dessa forma, aqueles que exercem atividades tradicionalmente realizadas aos domingos, poderão trabalhar nesse dia, mas deverão ter o descanso concedido em outro dia da mesma semana. A legislação especial do atleta profissional não ignorou as peculiaridades das atividades desportivas e a tradição dos jogos nos fins de semana.
Por isso, adaptando a regra da Carta Magna, reiterou o direito de o atleta profissional gozar de um dia de descanso, mas indicou que este será preferencialmente no dia seguinte à realização das partidas. Portanto, desde muito tempo os atletas têm direito a usufruir um dia de descanso na semana, mas sem qualquer prejuízo para a regular realização dos jogos agendados para os domingos. Afinal, os atletas que atuarem no domingo poderão gozar do descanso na segunda-feira ou em outro dia da semana, sempre após as partidas.
O clube que pretender não atuar mais em jogos aos domingos, sob alegada preocupação com o direito ao descanso dos atletas, não foi capaz de compreender a lógica legislativa. Afinal, a grande dificuldade não está em se marcar partidas aos domingos, mas sim em viabilizar um calendário de competições e jogos mais saudável e racional, que permita aos clubes conceder regularmente um dia de folga aos seus atletas.
No Brasil, muitos atletas já discutiram esse direito nos tribunais, havendo jurisprudência reconhecendo e negando a pretensão, muito conforme as variações dos fatos e o ônus da prova aplicável a cada caso. Também há discussões envolvendo a possibilidade de os treinos regenerativos, geralmente realizados no dia seguintes aos jogos, poderem ser considerados hipótese especial de descanso, pois realizado em proveito do organismo do próprio trabalhador, sem que o atleta fique à disposição do trabalhador.
Em outros casos, analisa-se a quem pertence o ônus de provar a efetiva concessão dos descansos, bem como a validade dos sistemas de controle coletivo, como as planilhas semanais com horários programados de treinos, jogos, viagens e descansos a cada semana. Enfim, o reconhecimento ou não das pretensões formuladas dependerá muito mais da situação fática vivida em cada clube e do ônus da prova, do que do próprio direito ao descanso.
Quando o descanso não puder ser concedido, haverá necessidade de pagamento de indenização, equivalente ao valor de um dia de trabalho, em dobro. Alguns contratos poderão ser negociados já prevendo o pagamento de parte do valor como indenização pelo descanso não concedido, mas sempre com o cuidado de não caracterizar salário complessivo. Alternativas para resolver eventuais dificuldades na concessão do descanso semanal certamente passará pela negociação coletiva, com a busca de soluções aplicáveis à necessidade e ao calendário de cada empregador, tudo com respaldo no art. 611-A da CLT.
Quanto aos jogos realizados em horário noturno, a Constituição Federal também garante remuneração pelo trabalho noturno em valor superior ao diurno. Como as competições desportivas ocorrem no ambiente urbano e não há qualquer disposição diversa constante da Lei Pelé, temos que o horário noturno dos atletas seria o mesmo aplicável aos demais trabalhadores urbanos, ou seja, das 22h às 5h da manhã. Parte da doutrina1 entende que o pagamento de adicional para jogos que adentrarem no horário noturno seria inafastável, graças à expressa determinação constitucional2. No entanto, há respeitável doutrina3 e jurisprudência que afastam a aplicação do adicional noturno justamente pela especificidade da atividade do atleta e pelo fato de o trabalho em horário noturno, muitas vezes, ser menos desgastante para o atleta que os jogos diurnos. Ora, se o objetivo do instituto é compensar o maior esforço daquele empregador que se ativa a noite, em comparação com os que trabalham durante o dia, demonstrado que o desgaste de um atleta que joga partida a noite é menor que o desgaste durante o dia, desaparece o sentido da proteção.
Além disso, há inúmeras outras situações em que os efeitos do horário noturno foram relativizados nas relações desportivas, como ocorreu nos casos de atletas menores de 18 anos, que atuaram normalmente em partidas noturnas, apesar de a Constituição Federal expressamente proibir o trabalho noturno para menores de 18 anos. Ou seja, a questão está longe de ser pacificada, variando o entendimento conforme cada juízo e cada situação fática.
Como sugestão ao legislador poder-se-ia fixar um horário distinto para caracterizar o trabalho noturno relacionado com a prática do desporto, que fosse capaz de respeitar a tradição dos horários dos jogos noturnos no Brasil. Outra hipótese, sempre desejável, seria novamente buscar soluções negociadas com os sindicatos.
Como se observa, as questões são antigas e a melhor solução, para que atletas tenham respeitados seus direitos e que clubes não sejam onerados com cobranças retroativas, esta na busca de soluções negociadas ou na racionalização do calendário, de modo que haja espaço suficiente para a concessão dos descansos. E mais importante, sem qualquer necessidade de alteração das datas e horários dos jogos ou sem que clubes precisem exigir que suas partidas sejam agendadas em outros períodos.
*Carlos Eduardo Ambiel é advogado. Sócio do escritório Ambiel, Manssur, Belfiore, Malta, Gomes e Hanna Advogado. Professor de Direito do Trabalho e Direito Desportivo da Faculdade de Direito da FAAP/SP.
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