Determinado paciente, acometido por moléstia grave, recusa os remédios prescritos por seu médico e, abusando do seu poder de persuasão, negocia a aplicação de substâncias paliativas, incapazes de atacar a causa da doença.
O médico cede e aplica doses esporádicas do produto, que ele não prescreveu e sabe que será ineficaz. A aplicação resolve, assim, os efeitos da doença por curtos períodos, mas não ataca o motivo. Oferece, pois, uma sensação efêmera de conforto, que arrefece com o tempo, enquanto a causa, que fora apenas abafada pela droga, se alastra.
Ao cabo do prazo de ação da substância, o problema se revela mais agudo. Para evitar a dor – e esconder, novamente, a moléstia – o médico sugere nova dose. A dependência da rotina alonga os anos de vida do paciente, mas não melhora o sofrimento e não reverte a debilidade orgânica.
Ao longo do mórbido processo, o doente contrai outra doença, causada por vírus, a qual pode ser fatal. O médico tem que tomar decisões rápidas. Se ignorar a nova enfermidade, não terá paciente para cuidar; ele não resistirá. Porém, se exagerar na formulação das soluções imediatas, a moléstia principal criará formas de resistência e as medicinas disponíveis serão insuficientes para enfrentá-la.
Apesar da mudança de cenário, abalado por elemento exógeno – o vírus –, o doente tenta se impor novamente sobre o seu médico e determinar-lhe as condutas apropriadas para situação, imputando-lhe, ademais, os ônus e as responsabilidades pelo procedimento e pelo resultado.
Constrangido pela sua subserviência histórica, o médico ensaia uma conduta científica; o molestado ameaça insurgir-se. A insurgência poderá matá-lo. Mesmo assim o tom ameaçador se amplifica.
O médico, então, tem dois caminhos a seguir: a manutenção do percurso anterior, que lhe manterá refém da chantagem emocional – e que poderá abalar sua reputação; ou o desvio de rota, que implicará o encaminhamento conforme seus conhecimentos técnicos e sua responsabilidade – ou consciência – profissional.
Guardadas as devidas diferenças, esse é o panorama do futebol brasileiro.
Trata-se de atividade relevantíssima, renegada, historicamente, pelos governantes, que a ela se associam, em momentos especiais, para fins também específicos ou eleitoreiros, e que está doente – muito doente. Como envolve, porém, a paixão popular, não pode perecer. A solução para esse "filho problemático" se repete no tempo: a injeção de recursos, diretos ou indiretos, que amenizam, enquanto duram, as cobranças ou mesmo evitam a convivência.
Ou seja: as soluções meramente paliativas, propostas até hoje, resolvem apenas os sintomas do momento, mas nunca atacam a causa, que se torna mais complexa (ou irreversível), de modo que as intervenções subsequentes passam a demandar ajudas mais onerosas e doloridas.
A sociedade brasileira paga, há mais de século, essa conta. A insistência com o doente tem justificativa, porém: o futebol é a mais intensa e importante manifestação cultural do país e o mais valioso patrimônio coletivo. Não pode mesmo morrer.
Terá o doente (por meio dos seus dirigentes, no caso do futebol), agora, capacidade para reconhecer os equívocos dos tratamentos anteriores e delegar ao médico o encaminhamento dos procedimentos e medicamentos necessários para, além da enfermidade inesperada, resolver o quadro crônico?
Pelo que se lê na imprensa, parece que não. Novamente, ao doente, ou melhor, aos doentes sugerem-se soluções imediatas, algumas quase fantasiosas – como a antecipação de receitas de loteria, as quais, além de inexpressivas, estão, por ora, comprometidas –, ou outras de legalidade questionável, como o acesso (ou a expropriação) ao patrimônio de entidades privadas (no caso, a CBF).
Medidas imediatas e emergenciais – tem-se repetido nessa coluna – não podem ser descartadas, nesse momento de pandemia; mas a sociedade não pode mais aceitar o ônus da fatura permanente. A partir de agora, a solução deve ser também estrutural e conduzida pelo médico. E o médico, neste caso, é o Poder Legislativo.
Em outras palavras, como bem diz José Luiz Portella, o encaminhamento da cura definitiva tem natureza política – e não cartolarial (a parte final da frase é por conta do autor, e não do ilustre citado).
Feliz ou infelizmente, o desafio, que não é pequeno, nem simples, caiu no colo da atual legislatura. Seus líderes – presidentes Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre – e em especial os congressistas que têm se preocupado com o problema e produziram propostas sobre o tema – nomeadamente, deputado Federal Pedro Paulo (DEM/RJ) e senador da República Rodrigo Pacheco (DEM/MG) –, saberão superar obstáculos que se pronunciaram no passado recente para, enfim, convergir em relação a um encaminhamento salvador, de amplitude estrutural e nacional, para o futebol brasileiro.
Aliás, democratas e republicanos que são, não se esquecerão do magnífico pronunciamento de Thomas Jefferson, ao assumir a presidência dos Estados Unidos da América, em 1801, no sentido de aproximar-se das ideias de Alexander Hamilton: "toda diferença de opinião não é uma diferença de princípio"1.
A adequada ação não pode tardar; o futebol não aguantará. O povo brasileiro, por outro lado, agradecerá a atuação patriótica.
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