Texto de autoria de Rodrigo R. Monteiro de Castro e José Francisco C. Manssur
Em mais um belo filme protagonizado por Ricardo Darin – que nele vem a ser um medíocre jogador de futebol aposentado, cujo grande feito fora um gol, no final de determinada partida, sobre o (glorioso) Chacarita Juniors –, um grupo de cidadãos comuns, formado, em sua maioria, por trabalhadores que amealharam alguns punhados de dólares durante toda a vida (os giles), reúne-se para, somando suas economias a doação de uma empresaria entristecida, tentar adquirir silos abandonados e, a partir deles, desenvolver uma cooperativa.
O sonho e, num primeiro momento, frustrado pelo golpe empregado por um banqueiro (ou bancário) e um advogado, que se aproveitam do acesso a informações sigilosas para convencer o personagem de Ricardo Darin a depositar os recursos do grupo em uma instituição financeira no dia antecedente ao bloqueio de saques que seria imposto pelo Governo argentino.
Após um relativamente longo período de incredulidade e estupefação, os giles – expressão traduzida ao português como tontos – descobrem, no entanto, serem capazes de ações e realizações impensáveis para pessoas que, independentemente do nível de instrução, costumavam se submeter aos comandos centrais, mesmo que dissociados das necessidades das gentes.
O torcedor brasileiro vive, há décadas, a sua odisseia de tontice, sem que chegue perto de insurgir-se contra os poucos oportunistas que se apropriaram do futebol, patrimônio nacional. A apropriação, aliás, transmite-se, historicamente, dentro de grupos herméticos, mesmo que opositores no ambiente associativo, mas que se sustentam, uns aos outros, com a leniência do Estado.
Sim, a situação do futebol brasileiro também decorre de uma sucessão de políticas públicas equivocadas, comissivas ou omissivas, e, em (quase) todas elas, prevalece a parceria entre o público e o privado, na preservação do modelo associativo, originado no século retrasado.
O maior erro, dentre todas as concepções, talvez tenha sido cometido por uma assembleia que teve em sua composição alguns notáveis, a Constituinte, que forjou o art. 217 da Constituição Federal de 1988, fundamento para prática de abusos que são cometidos desde a promulgação do atual texto constitucional. Com efeito, a defesa da autonomia das entidades desportivas dirigentes e associativas, quanto a sua organização e ao seu funcionamento, vem sendo utilizada como barreira a implementação de reformas que ameacem o status quo, mas, por outro lado, não evita as recorrentes demandas de salvamento estatal as custas da sociedade e do contribuinte, sem as devidas contrapartidas.
A justificativa para a evidente contradição costuma ser a mesma: a suposta preocupação com o torcedor, um contingente de aproximadamente 140 milhões de pessoas, e sua paixão; justamente com o torcedor, integrante do grupo de interesse mais prejudicado e menos beneficiado pelo sistema cartolarial.
Antes da covid-19, a crise futebolística já estava posta, e já se formava consenso – exceto entre os beneficiários daquele sistema – a respeito da inviabilidade do modelo brasileiro.
Havia, sim, justificados debates e divergências, em relação a estrutura substitutiva, mas não se negava que a arquitetura de um novo marco jurídico era condição para (i) a introdução de formas contemporâneas de governação da atividade, ou melhor, da empresa futebolística, (ii) a captação de recursos com investidores privados nacionais ou estrangeiros e, assim, (iii) a superação da crise sistêmica.
Não se pode negar que, agora, a situação mudou, para muito pior, e que, como ensina a história, não haverá saída, não apenas para o futebol, mas também para vários outros setores da economia, sem uma enérgica participação do Estado. A diferença, no entanto, entre outras atividades e a futebolística, reside no fato de que a pandemia não causou a crise do futebol, que já era patente, mas a intensificou – e provavelmente a terá alçado a níveis sem precedentes.
Daí a conclusão de que quaisquer movimentos emergenciais devem, em respeito ao torcedor e ao contribuinte brasileiros, levar em conta o histórico do setor e ser atrelados a mudanças estruturais, que evitem o continuísmo do modelo associativo que sangra o País.
O enfrentamento da situação não será simples e exigira, além de criatividade, idealismo dos agentes públicos, para evitar a sucumbência a apelos interessados, que se transformarão em plataformas políticas – ou politiqueiras; mas o esforço será louvável: o futebol faz parte da cultura brasileira e somente não ocupa papel mais relevante na economia e na contribuição para redução do abismo social por conta das erráticas políticas que se instituíram após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Assim, no âmbito da crise que assola o planeta, a participação do Estado na arquitetura de uma solução está mais do que justificada, desde que não se resuma a conferir mais dinheiro público, por via direta ou indireta, para manutenção de um sistema indesejável (e inviável), mantido sobre os pilares (i) da irresponsabilidade, (ii) do não recolhimento de obrigações tributárias e da (iii) falta de transparência.
Nesse sentido, movimentos que envolvam (i) um novo profut, (ii) a revisão do profut existente, para permitir o reenquadramento de desenquadrados, a adesão de novos participantes, o dilatamento de prazos ou o diferimento de obrigações pecuniárias, ou ainda (iii) linhas de crédito subsidiadas, de instituição de fomento, como o BNDES – dentre outros mecanismos possíveis –, não deveriam ser implementados sem as necessárias afetação e contribuição dos agentes responsáveis pela origem do problema, e, como já repetido de modo exaustivo, sem a imposição de reformas estruturais, que contemplem a mudança do modelo de propriedade do futebol e a introdução de novo sistema de governação – dentre outros aspectos –, que estão no Senado a espera de um necessário e rápido movimento de convergência.
A conclusão do processo legislativo - que depende de pequeno esforço político - deveria ser a condição necessária para que o torcedor e o povo brasileiro não se insurgissem contra nova malversação (e desperdício) de recursos públicos.