Meio de campo

O Congresso Nacional pode salvar o futebol brasileiro. Ou destruí-lo.

O Congresso Nacional pode salvar o futebol brasileiro. Ou destruí-lo.

12/2/2020

A Montesquieu (1689-1755) se atribui a primazia da teoria moderna da separação dos Poderes, consagrada nos Estados que se formaram sobretudo após transformação econômica e social provocada por uma sucessão de fenômenos históricos, tais como a revolução industrial, o iluminismo e a revolução francesa.

A adoção da estrutura tripartite, atribuidora de funções a Poderes independentes – porém vinculados a certa organização, de natureza constitutiva, com características lógica, coesa e harmônica – impôs-lhes (a esses Poderes), em contrapartida, um sistema interno de controle com funcionamento ordenado pela Constituição; sistema esse, aliás, que os legitima e se presta a evitar (e a reprimir, quando praticados) abusos estatais.

No Brasil contemporâneo, esse ideal foi adotado pela Constituição da República, em seu Título IV, que trata da "Organização dos Poderes", dividindo-os em Legislativo, Executivo e Judiciário.

A importância da produção legislativa, de modo independente, a qual se sujeita, em tese, apenas à vontade popular – e a despeito da inegável relevância da função executiva – revela-se na própria topologia constitucional: é do Congresso Nacional, composto por Câmara dos Deputados e Senado Federal, que se ocupa a Constituição, no primeiro capítulo do Título, antes de tratar dos demais Poderes.

Não à toa que, nos recentes episódios de tentativa de ruptura institucional, promoveu-se a demonização da política e da classe política, simbolizada pelos deputados e senadores, no plano federal, com o propósito de, conforme demonstra a história, forjar salvadores da pátria, desprezadores do processo democrático, que tendem a, além de se sobrepor ao Legislativo, construir a imagem e a sensação de inevitabilidade e essencialidade para a segurança e o futuro da Nação.

O Poder Legislativo, por outro lado, também atua conforme parâmetros que lhe são impostos pela Constituição. Não lhe cabe, por exemplo, a prática de atos atribuídos ao Poder Executivo. Mas a sua limitação vai além: o produto legislado não é absoluto, pelo simples fato de emanar de um Poder Constitucional; também ele estará sujeito ao crivo da constitucionalidade e, conforme certas correntes, da própria legalidade, em sentido mais amplo.

Daí a relevância (e imprescindibilidade) do Poder Judiciário, ao qual compete o controle, tanto no plano constitucional, quanto infraconstitucional, dos atos dos demais Poderes. A sua estruturação, de modo autônomo e desvinculado dos demais, confere-lhe, assim, a segurança de que, numa democracia, o exercício de prerrogativas, inclusive de força (em outras palavras, o exercício do poder), não será malversado ou usurpado.

Da compreensão desse sistema de checks and balances (ou freios e contrapesos) e do reconhecimento de que a produção do novo marco legal não pode servir a fins oportunistas ou casuísticos é que depende o futebol brasileiro.

Não se pode negar, sob qualquer ângulo de análise, e independentemente da ideologia do analista, que as Leis Zico, Pelé e do Profut contribuíram para construção de um modelo que se mostrou inviável, pois pautado, voluntaria ou involuntariamente, na exportação de jogadores (commodities), na irresponsabilidade financeira, no subsídio estatal e na leniência social.

A gravidade da situação dos clubes associativos no Brasil, que gerem uma atividade (i) acompanhada, em menor ou maior grau, por aproximadamente ¾ da população e (ii) que se revela o mais fantástico e poderoso instrumento de inserção social – e importante meio de desenvolvimento econômico –, não comporta mais um esforço legislativo que resolva problemas emergenciais – ou somente questões específicas. Essa foi a via adotada, pela facilidade (e pela oportunidade) política, desde a primeira crise futebolística.

Ao final, os agentes dominantes se satisfizeram e novos partícipes se projetaram, mas os problemas que já eram, então, incontornáveis, foram empurrados para momento futuro – hoje, no caso.

Esse ciclo vicioso deve ser interrompido. O futebol, que passou de (i) orgulho nacional e produto de admiração e exportação (de tecnologia) - são comoventes, nesse sentido, as manifestações de Pasolini a respeito da contribuição dos jogadores e do futebol brasileiro para a estética mundial - a (ii) negociador de seres humanos em idade prematura, sem o devido preparo educacional (o que, ressalte-se, é uma das formas de escravidão na modernidade), e a destruidor de riquezas, não cumpre suas funções econômicas e sociais.

O resgate de sua potencialidade, no entanto, não advirá, como a história demonstra, da boa vontade dos donos do futebol – que não são, sob o formato atual, os torcedores ou a sociedade, como enganosamente se afirma. A dominação futebolística, por um punhado de dirigentes que, conforme os números demonstram, quebraram uma atividade consumida em todos os países do mundo, somente se interromperá com a salvadora providência do Congresso Nacional.

E é justamente lá que se joga, na atualidade, o jogo que definirá o destino do futebol brasileiro; aliás, das mãos (ou dos pés) do Senado Federal se promoverá o próximo movimento, que será destruidor, fatal mesmo, caso prossiga na linha das malsucedidas reformas casuísticas, feitas no passado, responsáveis, em grande medida, pelo estado crônico de insolvência dos times locais, e que poderá produzir, ademais, incerteza, insegurança e extrema judicialização. Mas, inversamente, esse movimento poderá ser salvador, se estabelecer, enfim, as bases para formação do novo ambiente do futebol: sustentável, transparente, seguro, previsível e respeitador dos legítimos interesses dos agentes que dele participam, incluindo clubes, atletas, torcedores e, por que não, o cidadão brasileiro.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.