Os clubes de futebol, constituídos sob a forma de associação civil sem fins lucrativos, operam, em muitos casos, atividades econômicas que faturam anualmente dezenas ou centenas de milhões de reais – e que logo atingirão a marca do bilhão, com o Flamengo.
Ao contrário do que se passa com as empresas tradicionais, que batalham, diária e constantemente, pela preferência do consumidor, o processo de escolha de um time de futebol, pelo torcedor, costuma ocorrer apenas uma vez.
Ao escolher o seu time, a pessoa, desde cedo, ainda criança, o carregará durante toda a sua vida. A vitória ou a derrota em campo poderá, eventualmente, abalar a constância da relação, mas não será condição suficiente para que se opere o abandono ou a troca de time.
Essa característica revela a existência de dois pilares que devem ser compreendidos: o mercadológico e o passional.
O primeiro sugere a existência de um mercado consumidor perpétuo, pouco aproveitado pelos clubes brasileiros. O segundo, que interessa a esse texto, revela uma relação transcendental, suportada por dogmas que, no passado, flertavam com a poesia (ou com o folclore), mas que, nos tempos atuais, impedem o desenvolvimento do futebol brasileiro (ou, em tom realista – e ao mesmo tempo alarmista –, o conduzem ao seu destruimento).
O principal e mais maléfico dogma, persistente por conta da paixão clubística, consiste na convicção de que o time de futebol não pode ter dono. Essa proposição, todavia, não resiste a uma singelíssima análise da realidade, curiosamente evitada – ou manipulada – pelos agentes dominantes do sistema do futebol.
A realidade é que todo time tem dono.
No Brasil, o dono, desde a introdução do esporte, foi – e ainda é – a associação civil, ou seja, o clube.
Ocorre que os donos do futebol brasileiro – os clubes – não têm condições de competir com os donos dos principais times globais. Faltam-lhes dois elementos essenciais, para que pudessem concorrer com alguma chance de igualdade: organização profissional e dinheiro para investir.
Chega-se, assim, ao ponto central deste texto: a necessidade de conjugação da relação passional do torcedor com a formação de um ambiente empresarial, sustentável, concebido para prover aos times os meios de se readequarem e se reinserirem econômica e socialmente. E, assim, promover o abandono do plano dogmático e substituí-lo pelos planos da ciência e da tecnologia.
A solução foi apresentada pelo projeto de lei 5.516/19 ("PL 5.516/19"), de autoria do senador Rodrigo Pacheco, em trâmite no Senado Federal, que reconhece, de um lado, a relevância cultural do futebol (que integra, aliás, o patrimônio nacional), e, de outro, também assume a necessidade de atração de recursos privados para investimento e desenvolvimento da atividade futebolística.
De acordo com o art. 2º do PL 5.516/19, caso um clube constitua uma Sociedade Anônima do Futebol – SAF, ela emitirá duas espécies de ações, sendo uma delas denominada "classe A", que somente poderá ser subscrita pelo clube. Portanto, nenhum outro acionista – além do clube – será detentor (ou proprietário) de ação dessa classe.
A ação classe A conferirá ao clube o direito de, enquanto representar pelo menos 10% do capital social da SAF, vetar as seguintes matérias:
a) a alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube para formação do capital social;
b) qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade ou trespasse;
c) a dissolução, liquidação e extinção; e
d) o pedido de recuperação judicial ou de falência.
Além disso, enquanto o clube detiver ao menos uma ação classe A, poderá, ainda, vetar as seguintes demais matérias:
a) a alteração da denominação;
b) a modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluindo, símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores;
c) a utilização de estádio ou arena, em caráter permanente, distinto daquele utilizado pelo clube, antes da constituição da Sociedade Anônima do Futebol; e
d) a mudança da sede para outro município.
Assim se chega a um sistema harmônico, composto de freios e contrapesos, que atribui ao clube associativo, originador do time de futebol, a função de controlar e evitar a prática de determinados atos que poderiam atentar contra a história do time e a paixão do torcedor.
Eis aí um sistema que derruba o maior dogma do futebol brasileiro; dogma esse que serve apenas para perpetuar a dominação cartolarial, de origem patrimonialista, que privilegia o interesse particular de pouquíssimas pessoas, em detrimento do interesse do país, dos times, dos torcedores e dos demais agentes que participam da atividade futebolística.