O texto publicado semana passada (em 4/9/19), neste espaço, celebrava, sob o título desenha-se, enfim, o futuro do futebol, a expectativa do novo marco regulatório que o presidente da Câmara dos Deputados prometera.
De lá para cá (em apenas uma semana, portanto), uma minuta do anteprojeto de lei passou a circular e surpreendeu o ambiente futebolístico: praticamente nada do que se vinha debatendo, nos últimos quatros anos, fora aproveitado. Surgiu, por outro lado, um projeto de salvação de determinados clubes, que será (se aprovado) imposto aos demais, à conta dos contribuintes, dos credores dos clubes e dos próprios clubes.
Um dos caminhos sugeridos foi o abandono da criação de uma via jurídica legitimadora do novo sistema do futebol, capaz de oferecer-lhe segurança jurídica, credibilidade e transparência: a sociedade anônima do futebol (SAF).
A decisão é um equívoco.
Parte-se, assim, do texto publicado semana passada (eventualmente transcrevendo-o, em pequenas passagens), para apresentar os motivos que justificam o resgate e a regulação da SAF.
O brasileiro não concebeu o futebol, mas o aperfeiçoou e o alçou à mais globalizada das manifestações humanas.
O aperfeiçoamento não esteve vinculado a ações planejadas pelo Estado, pelos governos ou por agentes privados; decorreu da espontaneidade com que se praticou, no século passado, o jogo de bola.
A qualidade do futebol brasileiro gerou, porém, uma reação (ou contrarreação) que se tardou a identificar: países concorrentes, sobretudo europeus, reformularam o modelo amadorístico e adotaram uma prática construída sobre pilares empresariais. O futebol passou a ser negócio, de natureza econômica.
A partir daí o jogador brasileiro se converteu, paulatinamente, em coisa (no plano interno, virou commodity; no externo, matéria prima para transformação) e os times locais começaram a definhar.
Sob qualquer ângulo, criou-se, no Brasil, uma indústria destrutiva da riqueza nacional, e nenhum Governo, desde a Constituição de 1988, ateve-se à destruição.
Tentou-se, é verdade, estimular a conversão do clube em empresa. As Leis Zico e Pelé, inicialmente, e depois a Lei do Profut, propuseram soluções formais ou punitivas.
Nenhuma delas, no entanto, arquitetou a construção de um novo sistema (um novo mercado), em que os agentes formadores de jogadores e de prática do futebol se desenvolvessem como empresas dissociadas dos clubes, mediante a captação de recursos privados, detidos e fornecidos por agentes de mercado, que se dispusessem a empregá-los no futebol, por conta da segurança jurídica e dos instrumentos oferecidos pelo próprio sistema.
Os resultados daquelas tentativas foram – e ainda são – catastróficos: os clubes brasileiros acumulam dívidas da ordem dos R$ 7 bilhões; o Brasil passou à posição de exportador de "pé-de-obra"; os campeonatos locais não atraem interesse do consumidor mundial; crianças e jovens acompanham, preferencialmente, campeonatos internacionais; os times são incapazes de se financiar no mercado e, assim, dependem do subsídio estatal, que chega por meio de isenções, perdões e parcelamentos; dentre outros graves sintomas.
Esse cenário de terra arrasada não condiz com a potencialidade do futebol brasileiro, que dispõe de todos os produtos da cadeia de valor: geração de jogadores, times, campeonatos, seleção, consumidor interno e possibilidade de acesso ao consumidor externo.
Falta, porém, ao futebol brasileiro um sistema (ou um mercado), construído sobre a premissa de que o futebol é um negócio pujante, apto a contribuir de modo substancial ao desenvolvimento econômico e social do País.
Esse mercado se construirá a partir de um novo marco regulatório, que fixe as regras do jogo e enderece, prioritariamente, três aspectos fundamentais: o modelo de propriedade do futebol – propriedade essa que atualmente é concentrada em associações sem fins lucrativos; um sistema de governança que ofereça segurança ao investidor privado; e instrumentos privados de financiamento da atividade futebolística.
Para que esse ambiente se forme, é preciso conceber uma via jurídica própria – a SAF –, que trará confiança, previsibilidade e estabilidade sistêmica. Assim, ao se prover, por via legislativa, seu contorno mínimo, se oferecerá ao clube, de um lado, segurança para entrar no sistema, e, de outro, ao investidor, a mesma segurança, porém, para investir.
A SAF se insere no sistema, portanto, como instrumento de legitimação, de confiança e, sobretudo, de segurança jurídica; elementos que inexistem no modelo atual do futebol brasileiro.
O investimento privado, com ela, ficará menos vulnerável às incertezas e às instabilidades políticas inerentes a todo clube social.
Destacam-se, por fim, dois outros aspectos que reforçam a relevância – e a necessidade – da criação da SAF:
Primeiro: não se trata de um modelo intervencionista; ao contrário, a SAF será a resposta à atual crise sistêmica, que se resolverá com solução também sistêmica. Se determinado clube não quiser constitui-la, e optar pela constituição de outro tipo de sociedade empresária – uma sociedade limitada ou uma sociedade anônima –, será livre para fazê-lo.
Segundo: a SAF se desgrudará dos modelos formais instituídos pelas leis anteriores (Zico, Pelé e Profut) e dos seus resultados catastróficos, que ainda assombram o ambiente futebolístico, a exemplo do recente episódio de que o time e os torcedores do Figueirense foram vítimas1.
Enfim, esses são alguns dos motivos que justificam a criação da SAF, como instrumento de viabilização, legitimação, previsibilidade e segurança jurídica do novo mercado do futebol brasileiro.
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