Meio de campo

Exército, cultura e futebol

Exército, cultura e futebol.

5/9/2018

A cidade de São Paulo foi presenteada, no domingo, 2/9, com a performance de Chucho Valdés e Gonzalo Rubalcaba, na área externa do Auditório do Ibirapuera. As poucas centenas de pessoas que se deslocaram ao escultural projeto de Oscar Niemayer desfrutaram de uma fusão pianística que colocaria Miles Davis e Jimi Hendrix de joelhos. Realmente, a dupla cubana faria até o jornalista Juca Kfouri, ateu declarado, reafirmar que Deus quase existe.

André Mehmari, reconhecido pianista brasileiro, foi escalado para fazer a abertura. Ao final de sua apresentação, diante de uma plateia paciente, atenta e, em sua quase totalidade, respeitosa, lançou uma proposição prenunciativa de um oportuno discurso político: a união do país não se realizaria pelo exército, mas, sim, pela cultura.

Deixando de lado o que seja cultura, sua função na sociedade e como promovê-la, a continuação de sua fala desnudou, de modo involuntário, um preconceito histórico, responsável pela construção de um muro entre o povo e as elites intelectuais e artísticas.

O músico pediu silêncio e educação à plateia durante a apresentação dos pianistas cubanos que logo subiriam ao palco, para que ambos pudessem sair dali com uma boa impressão do seu Brasil. Considerando, dizia ele, que as pessoas ali presentes deveriam ter uma certa educação, haveriam de compreender o pedido.

Havia, é verdade, um motivo: durante o seu set, formou-se um pequeno distúrbio, promovido por apenas um egoísta que, mesmo contra pedidos coletivos e do próprio André, insistia em manter-se de pé, atrapalhando a vista de dezenas de espectadores que, atrás dele, acompanhavam sentados o espetáculo.

Dois pontos do discurso chamam atenção.

Primeiro, o inafastável complexo de vira-lata que atormenta o brasileiro, que além de servir como instrumento de apequenamento – presente, aliás, em quase todos os povos latino-americanos –, se projeta como uma construção improvável do dever ser, e não do ser. Em outras palavras, somos o que somos, e não o que os outros acham que deveríamos ser ou o que gostaríamos que os outros achassem que somos. Sempre que tentamos ser o que não somos, definhamos, como comprova a seleção brasileira de Tite.

O segundo, e mais preocupante, revela o distanciamento de artistas e de intelectuais, do povo. Incluem-se, aqui, aqueles que pretendem falar pelo ou em nome dele, do povo.

Aliás, apesar de fundamental – e, para um não ateu, Divina –, a grande arte é concebida como uma manifestação elitista e superior, decifrada em pequena escala e acessível a poucos privilegiados, geralmente intelectualizados ou educados, que passam, assim, a formar espécies de castas culturais – ou melhor, sociais.

Daí o preconceito que se nutre em relação ao futebol, num país marcado por tantas desigualdades: apesar de tratar-se da manifestação máxima de sua cultura, a mais intensa e democrática, ainda é tido como tema menor e desprezado em sua função transformadora, por sua suposta insignificância intelectual.

Curiosamente, essa postura se revela não apenas em quem o ignora, mas, também, em quem o pratica, exerce a torcida e manifesta paixão clubística; a incompreensão apresenta, portanto, características epidêmicas.

Eduardo Galeano sintetizou o problema: "existem intelectuais que negam os sentimentos que não são capazes de experimentar nem, como consequência, compartilhar: só poderiam se referir ao futebol com um gesto de desgosto, asco ou indignação".

O jogador de bola, em sua batalha pela afirmação como indivíduo (e/ou pela inserção na sociedade elitista), desconhece teses ou teorias, mas sente o peso de séculos de desigualdades e, quando se afirma, ainda assim não se vê ou é visto como um igual. Afinal de contas, não passará, aos olhos de seres superiores, de um futebolista.

Isso explica, em certa medida, a aversão ao mais humano, brasileiro e falível produto futebolístico da década: Neymar.

O país não se reconstruirá, é certo, pelo exército, pela força ou pelo medo. A reconstrução pressupõe uma concepção humanizada de Estado, que irradie essa característica por todos os campos de atuação política, especialmente o da cultura.

Nesse campo (da cultura), ou nesse gramado, o futebol é o principal agente de transformação, muito mais do que a mandioca ou o samba, porque, além de genuinamente popular, não tem limites ou fronteiras, culturais, sociais ou econômicas.

É realmente chocante e alarmante o fato de que os filhos deste solo – sobre o qual bolas não param de rolar -, que se apresentam como salvadores da pátria e dignos condutores dos destinos da Nação, não cuidem de tema tão fundamental. Eles, como, na verdade, nós, brasileiros, ainda achamos que futebol não passa de instrumento de alienação das massas ou de entretenimento de gentes evoluídas.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.