Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo
O ano de 2018 se iniciou na Alemanha com prenúncio de uma possível – e impactante – mudança no modelo organizacional do futebol daquele país.
Como divulgado pelo Financial Times na última semana1, a Deutsche Fussball Liga (DFL), organização responsável por gerenciar as duas principais divisões do futebol alemão, abriu debate acerca de mudanças na regra de propriedade das entidades futebolísticas nacionais, conhecida como "50+1".
Essa regra ("50+1") – que já foi objeto de análise nesta coluna2 – impõe a obrigatoriedade de que, nos casos de constituição de sociedade empresária, o clube (isto é, a associação civil composta pelas pessoas físicas, em geral, torcedores do respectivo time) seja titular de participação que lhe garanta, pelo menos, 50% dos votos + 1 voto nas deliberações da sociedade constituída.
Ou seja, permite-se a criação de uma sociedade empresária, para a condução da atividade futebolística, bem como a gestão do negócio e de bens e direitos relacionados a essa atividade, cujos sócios sejam o clube e os investidores interessados. No entanto, o controle societário dessa sociedade empresária – no mais das vezes conferido pela maioria dos votos, que permite, a princípio, a preponderância nas deliberações e na escolha de administradores –, precisa ser detido pelo clube.
Se, por um lado, o modelo alemão garante a manutenção, pelo clube, do controle do time e da empresa – aqui entendida como a atividade econômica organizada, profissionalmente, para a exploração econômica –, cujo objetivo declarado é a preservação dos elementos culturais e históricos vinculados ao futebol, por outro, dificulta, até certo ponto, o ingresso de investidores, os quais, sem a perspectiva de assunção do ou participação no controle da sociedade empresária, passam a ter menos incentivos ao aporte de capital.
Esse é um modelo único, peculiar à Alemanha. Inglaterra, França, Espanha e Itália, por exemplo, dispõem de outras regras, as quais não contêm restrição semelhante.
Isso não significa, no entanto, que a tropicalização dos modelos europeus – seja o inglês, totalmente aberto a investidores, seja o alemão, que apresenta limitações ao capital de terceiros – consista em um processo simplório. Como dissemos em outra oportunidade3, esse movimento antropofágico, sem adaptações, de replicação das estruturas estrangeiras nas regras brasileiras, representaria uma injustificável intervenção estatal no modo de o nosso futebol se organizar.
Na verdade, deve-se privilegiar a liberdade organizacional.
Ao Estado, cumpre criar uma moldura regulatória que seja profícua e permita o desenvolvimento do mercado futebolístico – como proposto pelo PL nº 5.082/2016, instituidor da Sociedade Anônima do Futebol - SAF. Já aos clubes, a liberdade para, de acordo com seus interesses e particularidades, optar por uma ou outra forma organizativa.
São 722 clubes profissionais registrados no Brasil, de acordo com a CBF, conforme relatório divulgado em 17/01/20184. A esmagadora parte deles – pelo que se tem notícia – organizada por modelos que os distanciam do mercado. Verifica-se, no país, um apego à forma associativa, cujas características traduzem a história do futebol local: pouco profissional e dependente da leniência estatal.
Mas, se a maneira como se organizam, do ponto de vista formal, apresenta semelhanças, por outro lado, as peculiaridades de cada clube os tornam únicos. E é com base nessa singularidade que os projetos de reestruturação organizacional devem se lastrear.
O que serve para Atlético Mineiro e Corinthians, por exemplo, dificilmente servirá para Grêmio e Flamengo. São histórias e características diferentes.
Do mesmo modo, os modelos que se aplicarem a tais clubes, demandarão adaptações, antes de serem replicados em Avaí, CRB, Juventude, Guarani, Santa Cruz, Paysandu, Criciúma, Goiás, Remo ou Náutico; clubes que, hoje, buscam recuperação, em razão de circunstâncias diversas, e, a partir de uma reestruturação adequada, podem voltar aos trilhos e se consolidar como potências nacionais ou regionais. Afinal, reúnem condições para isso.
O Estado não pode tolher essa liberdade de escolha, que deve caber apenas aos clubes. A questão do controle da atividade futebolística, que se daria por meio de sociedade empresária, e de quem pode ou não o deter, portanto, é matéria de competência de cada clube.
Veja-se o exemplo do São Paulo Futebol Clube. O seu estatuto social prevê que, no caso de constituição de uma sociedade empresária, ela deverá ser, de forma obrigatória, controlada pelo clube – isto é, pelo São Paulo Futebol Clube –, "o qual deverá ser titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações assembleares e o poder de eleger a maioria dos seus administradores"5.
Mas, repita-se: esta é a realidade do São Paulo, que pode ser diferente da de Santos, Atlético Paranaense, Bahia, Palmeiras, Sport, Ituano, Ponte Preta ou Vitória.
Há diversas formas, contratuais e societárias, de regular a questão do controle: tanto para fins de possibilitar a assunção deste por investidores, porém, com a conferência, ao clube, de direitos de veto sobre matérias que lhe forem cruciais –mudanças de identificação, sede ou a aprovação de determinados negócios e operações etc. –, quanto com vistas à sua manutenção pelo próprio clube, como existe no estatuto do São Paulo. São opções casuísticas.
Retomando a conjuntura alemã, apesar da revolução empenhada no tocante à organização dos seus clubes de futebol, que resultou em uma experiência única, diferente das observadas no restante do mundo, aquele país não se furtou de acompanhar e comparar a evolução das suas regras.
Nesse momento, a DFL discute a revisão de um modelo que permitiu, a princípio, a consolidação de potências como Bayern de Munique e Borussia Dortmund, mas, revela-se não tão profícuo assim, por restringir a liberdade organizacional dos clubes nacionais e, por consequência, impedi-los de concorrer em igualdade com rivais da Inglaterra, por exemplo. A própria "duopolização" do futebol na Alemanha ratifica os problemas do modelo, que permitiu a concentração dos títulos e da maior parte dos recursos disponíveis na dupla Bayern-Borussia, dificultando a ascensão de novas forças.
Esse debate é mais uma evidência de que o Brasil não pode permanecer na sua condição atual: à margem de discussões importantes para a evolução do futebol.
A criação de um novo mercado futebolístico – contemplando mecanismos e conceitos como a SAF, a Debênture-Fut, a Bovespa-Fut e o Re-Fut (regime especial e transitório de tributação) – é essencial para, em primeiro lugar, o resgate, depois, o fortalecimento e, por fim, o desenvolvimento do futebol brasileiro.
Enquanto a Alemanha discute melhorias de um sistema que já deu sinais e resultados positivos, insiste-se, aqui no Brasil, na mesmice de um modelo fadado ao insucesso.
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2 A governação do futebol na Alemanha (Migalhas) e A governança no futebol alemão (Uol).
3 Futebol tropical (Migalhas).
4 Raio-X 2017: R$ 81 milhões em transações nacionais.
5 Art. 179. No caso de prever-se a constituição de sociedade empresária, ela deverá, necessariamente, ser, a qualquer tempo, controlada pelo SPFC, o qual deverá ser titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações assembleares e o poder de eleger a maioria dos seus administradores.