Em 09 de fevereiro de 2005 foi sancionada a lei 11.101 ("Lei de Recuperação de Empresas"), que ofereceu aos empresários brasileiros a oportunidade de, por via judicial ou extra-judicial, adotar procedimentos para iniciar a reversão do estado de crise e recuperar as condições de competição e de geração de riquezas. Além do próprio conjunto normativo, arquitetado para permitir a efetiva recuperação da atividade produtiva, a legislação inaugurou uma nova fase de aceitação, pela sociedade civil, da dificuldade alheia, especialmente do empresário.
A crise empresarial pode decorrer de diversos fatores, internos ou externos à empresa: no primeiro grupo listam-se, como exemplos, os abalos econômicos, conjunturais ou estruturais, e políticos1. No segundo grupo se inserem as ações que aqui se dividem em maliciosas ou operativas. As primeiras envolvem a malversação da empresa e a apropriação, pelo sócio ou administrador, dos meios de produção e de suas riquezas; as demais, são consequenciais, isto é, decorrem (i) de decisões tomadas no âmbito das legítimas atribuições da administração (business judgement rule), (ii) de orientações equivocadas dos sócios, apuradas em reuniões ou assembleias legalmente convocadas, instaladas e realizadas, ou, por fim, (iii) da incapacidade de superação das situações econômicas ou políticas catalogadas no primeiro grupo, apesar da adoção de medidas antecipatórias ou reativas.
O estado de crise não configura crime – exceto se a empresa tiver sido utilizada como meio para prática de condutas delituosas –, e não deve, por si só, justificar a condenação pública e o ostracismo social de pessoas afetadas.
A Lei de Recuperação de Empresas operou, assim, o processo de ruptura com antigos dogmas, que cravavam, na antiga concordata, uma espécie de moléstia social. A aceitação da recuperação da empresa em crise é, portanto, sintoma de evolução da sociedade, caracterizada pelo abandono da apriorística certeza de incorreção dos atos do empresário. Com isso se incentiva a “superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (art. 47).
Nem toda empresa em crise, porém, merece a compreensão social. O custo do processo de recuperação é, inevitavelmente, socializado, distribuindo-se as perdas entre os agentes que estabelecem alguma forma de relação com a empresa. Por isso que o desaparecimento de empresas inviáveis do ponto de vista econômico e o combate àquelas que fazem da corrupção sua forma de agir também coincidem com os interesses da sociedade. Não foi para elas que se arquitetou o sistema da recuperação.
Fixam-se, então, as seguintes premissas: (i) a recuperação da empresa é benfazeja à sociedade, mas (ii) a empresa que não cumpre sua função social, deixe de reverberar os valores da sociedade ou lhe imponha, com a sua preservação, um custo maior do que a extinção, não merece a complacência social.
Por três motivos, essa estrutura não se aplica, sem retoques, ao futebol. Primeiro porque, apesar de sua relevância econômica, vem sendo subsidiado e encastelado, há mais de século, pelo Estado. Segundo porque a natureza de todos os principais times brasileiros não é empresária, sujeitando-se, assim, a um regramento jurídico distinto daquele arquitetado às empresas. Terceiro, e não menos relevante, a atividade futebolística, no Brasil, não pode ser equiparada a qualquer outra atividade econômica.
Não se trata, aqui, de levantar uma bandeira ufanista, de cores verde e amarela. Ao contrário, o que se pretende, simplesmente, é um chamamento ao puro pragmatismo: a formação de um mercado do futebol, que atrairá investimentos significativos e terá impacto social de dimensão nacional.
A ruptura com o atual estado de coisas, responsável pela crise moral, esportiva e econômica dos clubes, depende de algumas medidas que tragam transparência, confiança e controle. A sociedade anônima do futebol - SAF, criada pelo PL 5.082/16, de autoria do Deputado Federal Otavio Leite, se revela, neste sentido, como o instrumento mais adequado para implementação do novo modelo.
Muitos dos principais times, porém, poderão encontrar dificuldades para atrair investidores por conta de suas situações financeiras. Veja-se, aliás, o endividamento de 24 deles2:
Qualquer agente de mercado ficaria tentado a defender a quebra da empresa ineficiente. No caso do futebol, essa máxima somente teria validade após a passagem por um processo de inserção e adaptação. Afinal, os associados de um clube, cuja natureza associativa protege-lhe da quebra, jamais votarão favoravelmente à constituição de uma sociedade empresária com ativos do futebol se houver risco de, na sequência, credores do próprio clube requerem a falência da nova sociedade. Da mesma forma, essa sociedade não atrairá investimentos sustentáveis se puder ser chamada a responder pelas obrigações do clube.
Por isso tudo, além da instituição da SAF, chegou a hora de se conceber um verdadeiro plano nacional de recuperação judicial da atividade futebolística, que rompa com o secular protecionismo estatal e reforce as bases da criação do novo ambiente do futebol brasileiro.
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1 Aliás, o empresário brasileiro vem enfrentando, nos últimos 5 anos, um constante aguçamento dessas variáveis, que afetam brutalmente a tentativa de planificação e realização de cálculos empresariais.
2 Época.