Meio de campo

Os produtos do futebol

O advogado mostra os quatro principais produtos do futebol: jogadores, times, seleção e campeonatos.

21/9/2016

A grandeza do futebol brasileiro se justifica pela existência de elementos internos e externos, que se alimentam e criam uma percepção mitificada e idolatrada.

A mitificação e a idolatria, mais do que percepções, compõem os próprios elementos externos. São, por definição, subjetivos, e se fundamentam nos elementos internos. A expansão destes reforça a construção – e a manutenção – da mitologia.

Quatro componentes internos afetam necessariamente a boa ordem sistêmica: os jogadores, os times, a seleção e os campeonatos. São os principais produtos do futebol. Entre eles existe, aliás, uma inegável interdependência.

É possível que o abalo de um não interfira imediata ou irreversivelmente nos outros. Ou que estes, bem estruturados, corrijam as imperfeições isoladas. Mas a disfunção serial interfere, sim, em todo o sistema.

Ainda pior: quando todos esses elementos passam a, de algum modo, atuar de modo disforme, sem uma organização sustentável, não apenas externalizam as somatizações, como criam uma fissura sensorial, que afeta a formação do mito e rompe a relação de idolatria.

Essa breve narrativa pretende explicar, sob determinado enfoque, a crise entre o torcedor brasileiro e o futebol. E também desnudar a incompetência de seus organizadores, responsáveis pela crise de um processo histórico.

O futebol não rivaliza, no planeta, com qualquer outra forma de manifestação esportiva, lúdica ou de entretenimento. Apesar da falta de rigor nesta classificação, ela é importante para enfatizar a importância do jogo de bola. Nada, nem a música, tem o seu alcance.

Nesse cenário, nenhum país foi capaz de assumir o protagonismo futebolístico como o Brasil. E os motivos eram os seus produtos.

No passado, formavam-se, de modo espontâneo, jogadores em grande escala e de qualidade – muitos, inclusive, candidatos a mito. Os times se apresentavam como expressão de cultura e de identidade regional, tornando-se referências sociais. Os campeonatos cumpriam papeis cultural e social, e serviam como elementos de integração. E a seleção contribuía para formação dos mitos e ídolos, em que ela própria, aliás, se convertia.

A espontaneidade marcava o sistema. Talvez mais do que isso: era sua própria essência. O fator de diferenciação. Cuja resiliência, no entanto, mostrou-se limitada.

Enquanto o Brasil, de um lado, manteve a crença de que os elementos espontâneos formadores da mística eram inabaláveis, e que o futebol era impermeável às técnicas de organização das empresas econômicas, os demais países, de outro lado, se abriram às novas concepções organizacionais com o propósito de induzir o desenvolvimento de seus produtos.

Muitos conseguiram. Alguns, de meros coadjuvantes ou importadores, passaram a formadores ou exportadores de produtos do futebol. Tornaram-se referências. É o caso notável da Espanha, da Inglaterra e da Alemanha, apesar de que a última jamais coadjuvou.

Os produtos desses países evoluíram e passaram a ser objeto de desejo coletivo. A evolução abrangeu, inicialmente, a importação de técnicas e de jogadores, permitindo a assimilação e, depois, uma repactuação social, envolvendo os agentes do futebol, o Mercado e o Estado.

No Brasil o movimento que se praticou - e se pratica - é justamente o inverso. Os governantes não identificam no futebol uma manifestação digna de sua preocupação. O mercado ainda não reconheceu sua potencialidade. E os agentes do futebol, ou os seus donos, se esforçam para manter um modelo de apropriação privada que gera benefícios isolados a um restrito grupo de interesse.

Um pacto social deve ser concebido, com o propósito de libertar, desenvolver e valorizar os produtos do futebol.

Em primeiro lugar, os jogadores. Razão de existência do esporte. E que devem ser formados, educados e preparados para que não sejam tratados como commodities destinadas à prematura exportação.

Segundo, os times, que devem cumprir função maior do que de meras associações de prática esportiva. Eles são, na verdade, agentes de transformação social. E de desenvolvimento econômico. Catalisadores de um processo de integração nacional.

Importante lembrar, neste sentido, que apenas o Brasil dispõe de pelo menos 12 grandes times, que rivalizam entre si, proporcionando uma combinação de duelos realmente sem qualquer comparação. O potencial, porém, não se limita a esta lista apostólica. Outros times, sobretudo oriundos do Nordeste e do Sul, com recursos financeiros e técnicas de governação, têm condições de, apoiando-se ainda na força e na amplitude de suas torcidas, se projetar à elite do país. E cumprir o destino integrativo a que se destinam.

Terceiro, o campeonato, produto dependente dos jogadores e dos times, mas que se projeta de modo autônomo sobretudo quando enaltece os agentes internos que lhe fazem relevante. E, assim, dirigem-se não apenas ao ambiente interno – como inexplicavelmente ocorre com o Brasileirão -, mas ao externo, oferecendo uma adequada exposição dos jogadores e dos times que o integram. A exemplo do que fazem os países europeus que disputam, inclusive no Brasil, as grades das emissoras de televisão.

Quarto, a seleção, que projeta o acerto ou o desacerto do sistema futebolístico do país. E atua como uma embaixada, propagando uma forma de ser e de jogar, cultivando a mística que lhe envolve.

Esses produtos não são exclusivos da organização brasileira. Compõem o sistema organizacional de qualquer país que se dedique à prática do esporte. Mas em nenhum deles as condições de evolução se apresentam com tanta naturalidade e potencial integrativo.

Porém, para que realmente se confirme como uma expressão de cultura, uma atividade de diferenciação, uma potencialidade econômica, os governantes e os parlamentares não devem se deixar seduzir por interesses de pequenos, porém poderosos grupos, que se organizam para impedir os avanços que dignificam a Nação.

Não há futuro sem uma estrutura sólida. Sem um propósito verdadeiramente republicano.

A solidez virá da capacidade de financiamento dos times de futebol. Sem dinheiro, não se compete globalmente. Antes disso, não se rompe com um modelo que o sufoca, que o escraviza.

Cabe ao Estado, assim, prover a via de direito que suprirá essa eficiência, atraindo capitais para o desenvolvimento de uma atividade que transcende temas mundanos, inclusive políticos ou religiosos.

Eis, enfim, o caminho para o resgate dos produtos do futebol. E do Brasil, como potência formadora e protagonista da maior expressão de cultura da humanidade. E como eventual líder de um mercado multibilionário.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.