Não há atividade empresarial sem meios de financiá-la.
Essa afirmação não se aplica apenas aos tempos atuais. Na realidade, ela se revela verdadeira em todos os momentos da história do desenvolvimento da empresa.
Com a queda do Império Romano e a consequente intensificação dos preceitos do Direito Canônico, que condenava a prática de operações de crédito pela esterilidade conceitual do dinheiro, o comerciante passa a recorrer a técnicas nascidas de sua criatividade para encontrar recursos a serem empregados em seu comércio.
Um reflexo dessa necessidade é, por exemplo, o surgimento de títulos representativos de créditos, ou os títulos de crédito, como a letra de câmbio e a nota promissória.
Outro reflexo, não menos relevante – aliás, fundamental para os avanços técnicos e tecnológicos que se produziram nos séculos seguintes, e que ainda hoje se produzem -, é a concepção das companhias, ou sociedades anônimas.
A expansão industrial na Europa e, sobretudo, a grandiosidade das empresas marítimas, com propósitos colonizadores, exigiam o emprego de enormes quantias de recursos, que se viabilizaram pela associação, em companhias, do Estado com comerciantes e investidores.
A Companhia Holandesa das Índias Orientais é um caso histórico dessa associação. Constituída em 1602, por ato de governo, tinha como propósito a "penetração e conquista do Golfo Pérsico à Indonésia". Seus poderes estatutários abrangiam a celebração de tratados, a realização de alianças, fazer guerra e cunhar moeda1.
Seu capital se formou pela contribuição do Estado, de acionistas armadores de navios e de acionistas anônimos, "nacionais ou estrangeiros, cristãos ou judeus"2.
O exemplo dessa companhia foi seguido por diversas outras, de distintas nacionalidades, e se prestaram a contribuir para, de um lado, a expansão mercantil, e, de outro, desenhar a geopolítica moderna.
Inicialmente, as companhias foram constituídas por prazo determinado. Ao seu término, os acionistas reaviam seus investimentos e apuravam eventual lucro. Essa estrutura logo revelou-se inoportuna, pois implicava a dissolução de uma empresa ativa e lucrativa. Assim surge, como solução ao modelo restritivo, a possibilidade de livre negociação das ações pelos acionistas.
Esse fato, somado ao aparecimento de novas companhias, reforça a importância do papel das bolsas, como ambientes de negociação de determinados ativos. E, no caso dos investidores em ações, para que pudessem realizar negócios de compra e venda no mercado secundário. Oferecia-se, com isso, liquidez ao investimento.
Nos dias atuais, as bolsas cumprem uma função essencial para formação e desenvolvimento do mercado. Uma Resolução do Conselho Monetário Nacional estabelece que elas são "sociedades anônimas ou associações civis, com o objetivo de manter local ou sistema adequado ao encontro de seus membros e à realização entre eles de transações de compra e venda de títulos e valores mobiliários, em mercado livre e aberto, especialmente organizado e fiscalizado por seus membros e pela Comissão de Valores Mobiliários. Possuem [ademais] autonomia financeira, patrimonial e administrativa".
A principal bolsa da América Latina é a BM&FBovespa, fruto da integração da Bolsa de Valores de São Paulo – Bovespa e da Bolsa de Mercadorias & Futuros – BM&F.
Em 2000, a BM&F criou o Novo Mercado, composto de três níveis diferenciados de listagem de ações de companhias abertas, que aceitam, de modo voluntário (autorregulação), submeter-se a padrões mais sofisticados ou rígidos de transparência e governança, e a adotar regras que amplificam direitos de minorias.
Do ponto de vista prático, não há uma nova abertura de capital no mercado brasileiro que não ocorra em um desses três segmentos.
Aliás, a abertura de capital continua sendo uma forma eficiente de financiamento da atividade empresarial. E poderia ser um caminho para financiar o futebol.
Além de uma reforma do marco regulatório, com a introdução de uma via de direito que permita a criação pelos clubes da sociedade anônima do futebol, outra proposta pode ser muito útil para formação do novo ambiente, do novo mercado futebolístico: a criação pela BM&FBovespa do Bovespafut.
Assim como o Novo Mercado e os Níveis 1 e 2 de governança corporativa, o Bovespafut seria um nível especial de listagem, que fixaria às sociedades anônimas do futebol que voluntariamente aderissem a ele, regras específicas de governação, de divulgação de informações e de proteção dos acionistas minoritários.
Mas esse nível especial não se impõe por lei. Apenas a própria BM&FBovespa, uma entidade privada, cujo capital é distribuído entre milhares de acionistas, pode tomar essa decisão. E, por se tratar de uma companhia aberta, com fins lucrativos, não terá motivos para adotar e implementar a proposta se inexistir ao menos uma razoável perspectiva de adesão por parte de futuras companhias que atuem com o futebol. E, ainda, se o mercado do futebol não se revelar suficientemente promissor para atração e emissão de valores mobiliários dessas companhias.
Do ponto de vista do investidor, a iniciativa implicaria algumas vantagens, como: (i) a padronização e as sofisticação de regras de governança; (ii) uma melhor organização do mercado que se pretende criar; e (iii) a formação de uma cultura de investimento em uma atividade que, além de seu potencial econômico, apesenta um realmente enorme potencial de contribuição para o desenvolvimento social do país.
O PL 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite (PSDB/RJ), que cria a sociedade anônima do futebol, oferece um incentivo para esse movimento. O art. 47 estabelece, nesse sentido, que:
"Art. 47. Caso alguma entidade administradora de mercado organizado de valores mobiliários crie um segmento especial de listagem para a SAF, prevendo práticas diferenciadas de governança corporativa, a administração pública direta ou indireta somente poderá subscrever ações ou valores mobiliários conversíveis em ações de SAF que aderir ao segmento especial.
Parágrafo único. Qualquer contrato celebrado entre a administração pública indireta e a SAF, especialmente de empréstimo ou financiamento, deverá conter cláusula que obrigue a SAF a, no caso de obtenção de registro de emissor de valores mobiliários perante a CVM, aderir a segmento especial de listagem para a SAF, instituído por entidade administradora de mercado organizado de valores mobiliários, prevendo práticas diferenciadas de governança corporativa".
Enfim, há uma série de mecanismos já consolidados que podem ser aproveitados pelo futebol, e outros que, com o advento de um novo ambiente, podem ser adaptados ou aperfeiçoados, com o propósito de impor um efetivo movimento de expansão econômica e desenvolvimento social, a partir justamente de sua relação histórica, cultural e afetiva com o povo brasileiro.
Daí, aliás, a relevância de uma regulação que encaminhe esses aspectos, em benefício, é sempre bom ressaltar, do próprio esporte e dos agentes que o protagonizam.
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1 Lamy Filho, Alfredo; Pedreira, José Luiz Bulhões. A Lei das S.A.: (pressupostos, elaboração, aplicação). Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 33.
2 Idem.