Meio de campo

Breves considerações a respeito da Sociedade Anônima Desportiva (Sades), prevista no anteprojeto de Lei Geral do Futebol

O colunista tece considerações a respeito da Sociedade Anônima Desportiva.

8/6/2016

1. Introdução

Estava programada para ontem uma Reunião Ordinária da Comissão Especial destinada a apresentar propostas de reformulação da Lei Pelé e outras leis que regulam temas relacionados ao futebol.

O propósito era deliberar o requerimento 21/16, do deputado Vicente Cândido (PT/SP), que tem como objetivo colocar em audiência pública o Anteprojeto de Lei Geral do Futebol ("LGF").

É sobre essa LGF que se discorre a seguir.

2. Conteúdo da LGF e pertinência do tema

A LGF trata de diversos temas relacionados ao futebol. Alguns relacionados à sua formação, outros ao seu desenvolvimento, e avança para regular, inclusive, temas que envolvem agentes auxiliares. A lista, não exaustiva, aborda (i) contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional de futebol, (ii) formação de atletas, incluindo registro de atleta em formação, bolsa formação, desligamento, transferência e indenização, (iii) prática de futebol profissional, (iv) regime especial de tributação aplicável às entidades de prática desportiva, constituídas como sociedades empresárias, (v) seguro de vida ou de acidentes para atletas, (vi) relações de trabalho do treinador profissional, (vii) direito de arena e imagem, (viii) gestão temerária nas entidades desportivas profissionais, (ix) ordem desportiva, (x) justiça desportiva e (xi) sociedades desportivas.

Dentro desse emaranhado temático, destaca-se um, que será explorado neste texto: a criação das sociedades anônimas desportivas, denominadas, na LGF, Sades.

Não resta dúvida, como sempre se defendeu nesta Coluna, que o Brasil precisa de uma legislação que o coloque no mesmo nível dos demais países que protagonizam o futebol mundial. E outros que, apesar de jamais terem se destacado, passaram a cumprir um papel de maior relevância.

Na Europa, de oeste a leste, iniciando-se com Portugal, passando por Espanha, França, Itália e seguindo, até a Alemanha (dentre outros), já se debateu e se ofereceu ao jurisdicionado modelo que atendesse às necessidades locais.

Aqui ao lado, em países como Chile e Colômbia, também existem soluções que colocaram a administração futebolística em outro patamar. E, talvez não por acaso, o futebol praticado nesses países deixou de ser secundário.

Trata-se, portanto, de movimento inevitável, exceto aos centros de prática do esporte que pretendam posicionar-se na “periferia” do planeta, como simples exportadores de "mão-de-obra".

Lutar contra essa realidade não trará qualquer benefício ao país, incluindo seus atletas, times, seleção e torcedores. Deve o Estado, portanto, oferecer uma regulação apta a atender à necessidade do futebol brasileiro.

Mas não pode ser qualquer legislação.

O modelo nacional deve olhar para realidade do país, para os seus problemas, e encontrar suas soluções. Preferencialmente de modo simples, aproveitando-se de institutos e técnicas já existentes no próprio sistema e que se mostram bem-sucedidos.

E, sobretudo, com o propósito de criar um microssistema - um, digamos, ecossistema - equilibrado, que respeite os aspectos culturais do jogo de bola e a relação da torcida com o seu time, mas que, por outro lado, crie o ambiente necessário para formação de um mercado regulado, onde os times poderão encontrar os recursos necessários para investir, evoluir e crescer.

Somente assim se formarão as condições para reduzir ou eliminar a dependência de agentes que não pretendem que o esporte evolua.

3. Princípios de uma lei reformadora do futebol

Como já afirmei em outro texto1, talvez pudesse se afirmar que a LGF seja um avanço. Mas não é disso que o Brasil precisa. Outras leis, desde a Lei Zico, passando pela Lei Pelé até chegar, recentemente, à lei que introduziu o Profut, trouxeram avanços. Mas que não foram suficientes para resolver o problema do futebol. A situação do esporte no país confirma esta proposição.

Importante recordar que, em relação à administração do futebol, vive-se momento atípico, extraordinário. A fragilidade do modelo existente, decorrente de escândalos internacionais de corrupção, prisões, crise com patrocinadores e outros eventos, oferece oportunidade histórica de se discutir e se introduzir uma nova forma societária para a organização do futebol.

Porém, qualquer esforço legislativo não pode apenas trazer novos avanços. Não. Somente se justifica se vier para resolver os problemas existentes. Aliás, mais do que isso: se também não criar outros novos problemas.

4. A LGF

Enumeram-se, abaixo, alguns pontos que devem ser objeto de profunda reflexão, para evitar o fracasso do projeto, e para que, como se disse antes, não tragam novos problemas para o futebol brasileiro. Ou, igualmente relevante: para que não representem obstáculos, voluntários ou involuntários, para complicar e esvaziar o debate.

I. O art. 69 "estabelece o regime jurídico das sociedades anônimas desportivas (sades)". A criação de um novo tipo societário deve ser tida como um tema de direito societário, e não de direito esportivo. É evidente que deve existir profundo conhecimento e sintonia com esta disciplina, mas não uma apropriação conceitual. Neste sentido, e seguindo a fórmula adotada pelo Código Civil para regulação da sociedade anônima2, uma lei geral do futebol, que trata da criação de tipo societário, deve simplesmente prever, em um único artigo, que é admitida a sua constituição, na forma de lei especial. E deixar para esta lei especial a sua regulação.

II. A técnica sugerida no item anterior permite isolar a discussão societária da esportiva. Além disso, evita que o trâmite seja afetado por conta de outras discussões, inegavelmente relevantes, mas que envolvem interesses próprios. Bem como de temas políticos que, certamente, influenciarão o debate.

III. Assumindo-se que uma lei geral do futebol deva regular apenas o futebol, não faz sentido a criação da sociedade anônima desportiva (Sades). Esta tipificação deve ser eliminada para dar lugar ao objeto da lei geral: o futebol, sendo a sua forma societária a sociedade anônima do futebol3, e a sua regulação feita em lei especial.

IV. Uma lei que pretende resolver problemas do futebol brasileiro pode – e deve – olhar, entender e importar certas soluções existentes em outros países. Mas não as copiar, sem as devidas adaptações. Este é um problema sério da LGF, ao adotar regras existentes no direito espanhol e, sobretudo, no português, que – novamente – fazem sentido para suas realidades.

V. Uma lei que pretende ser definitiva deve ser concebida como um sistema integrado, harmônico e lógico. A LGF não segue este caminho. A racionalidade por trás dela consiste em misturar normas ibéricas com praticamente todas as propostas contidas no Projeto de Lei 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite - PSDB/RJ (a seguir definido como "PL 5.082/16").

VI. Ao tentar um exercício de encaixe de todas essas leis e projetos, somando-se outras disposições, produz-se uma lei sem integração, pouco harmônica e, em certos aspectos, ilógica. Talvez um ornitorrinco jurídico.

VII. Vejam-se alguns exemplos:

(a) o tratamento diferenciado que se dá a Sades, em função da forma como ela se constitui. No caso de constituição da Sades em decorrência da personalização jurídica das equipes, conforme termo empregado no art. 71, II, o clube fundador somente poderá deter, a qualquer tempo, no máximo 40% e, no mínimo, 15% do capital social. Um equívoco, que aniquilará o interesse do clube em constituir uma sociedade anônima, regulada pela LGF, pois, necessariamente, não a poderá controlar. Esta deve ser uma decisão exclusiva dele, clube, e não do legislador.

(b) ainda no caso de personalização jurídica das equipes, o clube somente poderá integralizar sua parcela no capital em dinheiro. Mais um equívoco pois, se há algo relevante e único que pode ser contribuído pelo clube para formação da Sades é justamente o conjunto de ativos ligados ao futebol, tais como marcas, direitos econômicos de atletas e estádio.

(c) outro equívoco consiste na interferência da autonomia da Sades de organizar-se, econômica e operacionalmente. Decorre, sobretudo, da imposição de limite, de 30% de seu orçamento anual, para pagamento ao clube, em contraprestação da utilização de instalações físicas (como estádios). Este não é, definitivamente, um tema de direito societário. E mais ainda: não se justifica por intervir em relação jurídica puramente privada: clube/Sades.

(d) mais um equívoco, para fechar a lista trazida como mera amostragem, consiste na antecipação do destino de certos ativos na hipótese de extinção da Sades, sem guardar qualquer relação com a sua efetiva situação patrimonial e com a sua estrutura societária. De acordo com o art. 109, "quando tiver lugar a extinção de sociedade anônima desportiva, as instalações desportivas serão atribuídas ao clube desportivo fundador". Qual o motivo disso? Mas e se o clube deixar de ser acionista? Ou se detiver, por exemplo, 15% do capital social, e o estádio corresponder a 40% do patrimônio4?

4. Notas finais

A LGF incorpora, no capítulo destinado à sociedade anônima desportiva, toda a estrutura da SAF, prevista no PL 5.082/16, de autoria do Deputado Otavio Leite; mas insere uma série de outros dispositivos, que abalam a coerência sistêmica.

Como já se afirmou anteriormente, "para que se forme o mercado que o país precisa, que terá enorme potencial de contribuir para o seu desenvolvimento social e econômico, é recomendável que se adote um sistema próprio, sem a tentação de importar mecanismos que talvez se justifiquem em seus países de origem, mas não no Brasil. A exemplo do PL 5.082/16".

E, ainda: "que sua discussão no Congresso, pela matéria envolvida, se separe da discussão de uma Lei Geral". Pois esta, sem dúvida, tem natureza esportiva; enquanto a sociedade anônima do futebol, natureza societária.

__________

1 Idem.

2 O Capítulo do Código Civil que trata das companhias se limita, em dois artigos, ao seguinte: "Art. 1.088. Na sociedade anônima ou companhia, o capital divide-se em ações, obrigando-se cada sócio ou acionista somente pelo preço de emissão das ações que subscrever ou adquirir". E: "Art. 1.089. A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se-lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código".

3 Mesmo que se indique, no art. 70 da LGF, que a Sades se aplica primordialmente à prática do futebol, seu alcance, conforme o texto proposto, é muito mais amplo. E assim revela enorme potencial de gerar dúvidas interpretativas e de aplicação, podendo incrementar o nível de litigiosidade. Ou comprometer sua eficácia. Além de trazer para discussão pública agentes ligados a outras modalidades esportivas que, de modo legítimo, terão interesse em propor modificações pensando em suas modalidades de atuação, criando-se, assim, um ambiente diversionista – quando, na verdade, o que deve estar em discussão numa lei geral da modalidade é apenas esta modalidade.

4 Deve-se lembrar que, se o estádio passar à esfera patrimonial da Sades, esta terá pago por ele ou, então, terá recebido como integralização de capital. Em qualquer caso, o clube receberá sua contrapartida, seja na forma de preço ou de ações.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.