A elite política, formadora das bases conservadoras e, de certa forma, reacionárias do pensamento contemporâneo brasileiro, é responsável pela crise de identidade do país.
A idolatria e a subserviência aos cânones doutrinários que forjaram nações ditas desenvolvidas, sem terem passado, por estas bandas, pelo necessário teste de tropicalização e pertinência, justificam o descompasso nos planos político, econômico e cultural.
O xis do problema reside, justamente, nessa inconcebível padronização e equiparação de manifestações naturalmente díspares, inconciliáveis e indomáveis: com efeito, a cultura de um povo não pode ser medida por valores e padrões globais e globalizados, baseados em poder econômico e supremacia política.
A apropriação econômica da cultura implica, portanto, a mediocridade conceptiva e produtiva de grande parte das nações contemporâneas, centrais ou periféricas.
Essa lógica se revela em especial no Brasil, e na apropriação teórica e metodológica de seu maior bem cultural: o futebol. E explica o papel periférico e secundário que o quarto maior país do planeta e, até pouco tempo, 7a economia do mundo, cumpre no ambiente globalizado.
Entender, recuperar e alçar o futebol ao seu papel de protagonismo na economia contemporânea é fundamental para que o país não apenas reverta as crises econômicas e políticas que o afundam, mas, principalmente, para que passe a cumprir sua função transformadora no plano universal.
Sua irrelevância atual, portanto, é função da disposição – voluntária, sob um ângulo entreguista; ou involuntária, sob ângulo não menos perverso, que se materializa com a inépcia e incompetência na formulação de políticas públicas e privadas, no manejo e na administração – de seu maior produto.
Aí está a fórmula para o renascimento tardio do país: a aceitação de sua origem formadora, multirracial e cultural, disponível e por vezes exageradamente displicente, mas sempre pronta à cooperação e à solução dos problemas que se apresentam.
Estas características, aliás, diferenciam o Brasil de nações dominadoras e colonizadoras, que mantêm, há séculos, seus propósitos expansionistas, e que envolvem, nos tempos atuais, a (des)apropriação, direta ou indireta, do futebol.
Não por outra razão que está em curso o movimento multilateral, porém formalmente desorganizado, para impedir o surgimento de uma nova superpotência, cuja grande arma não se produzirá em fábricas e não derramará sangue; ao contrário, que enaltecerá a relação pacífica dos povos, a partir de um código comunicacional universal, e exercerá sua condição de prevalência pelo simples jogo de bola.
Nesse ambiente, nada representa melhor a capacidade de afirmação e prevalência do Brasil do que o seu futebol.
Essas ideias não são novas. Estão aí há décadas, difusas, disformes, mas latentes. Sócrates, o Brasileiro, soube lançá-las: "[o] futebol é nossa maior riqueza enquanto nação. É através dele, nosso grande teatro popular que podemos nos entender. Discutindo como nosso jogo é construído, estamos realizando uma autêntica terapia coletiva. (...) Nós, se tivéssemos gente melhor preparada para enxergar e difundir as coisas do futebol, teríamos encaminhado, há muito, e de forma mais coerente e profunda, as questões mais caras ao nosso povo. (...)".
Sócrates, o Futebolista, integrante de uma geração de heróis macunaímicos, não acreditou que ele fazia parte dessa gente melhor capaz de interpretar e cumprir seu destino transformador e prevalente, e sucumbiu à pressão do discurso dominante, que se materializa na (in)feliz apropriação da figura do vira-lata, ser inferior no plano formacional, intelectual e atlético.
Ali, em 1982, esse conflito se pôs como em poucos momentos ou cenários recentes na história civilizatória. Não se disputava um simples jogo de futebol. O duelo não era puramente estético, contrapondo a poética brasileira à dura prosa italiana, nas palavras de Pasolini. Não.
O embate era ético, universal, e transcendia os dilemas que afligiam o povo brasileiro. Era seu futuro, não apenas no plano político interno, mas sobretudo como "nação apta a assumir o papel de protagonista no plano mundial", que estava em jogo.
Os conflitos existenciais e a energia que se direcionava para reverter um regime de exceção talvez expliquem o fracasso. Que deve ser encarado como reversível e, provavelmente, necessário para confirmação, a posteriori, de suas verdadeiras vocações.
A "nossa gente", apropriando-se de expressão corrente em João Saldanha, é, sim, capaz de entender os fatores que, no momento atual, insistem em fragilizar a confiança do brasileiro e negar sua capacidade transformadora e de protagonismo no destino universal.
José Miguel Wisnik protesta contra essa postura histórica de subserviência; mais do que isso, contra essa complacência com a recusa de reconhecimento e valorização dos elementos verdadeiramente brasileiros (como, aliás, também se vê em Sócrates, o Brasileiro): "(...) em vez de dizer que o Brasil se faz reconhecer pelo seu poderio futebolístico mas não pelas coisas de fato importantes, é o caso de reconhecer que talvez seja difícil alguma coisa ‘de fato importante’ acontecer se não formos sequer capazes de compreender o sentido da importância que o futebol ganhou no país".
Ou melhor, é importante realçar: que sempre teve, para aproximação de uma sociedade democrática, sobretudo racial, inclusiva do ponto de vista social e capaz de instituir elementos para formação de uma "indústria" pujante e sem concorrentes.
Essas características foram há muito detectadas pelas nações prevalentes, que não economizaram esforços para impor seus interesses, (i) pela importação descontrolada de jogadores – produtos acabados e preciosos – a preço de commodity -; (ii) pelo desprezo com o processo adaptativo desses jogadores em ambientes naturalmente opostos; (iii) também pela submissão desses jogadores brasileiros a campanhas difamatórias, quanto às suas qualidades humanas, intelectuais e esportivas, para lembrá-los de que, apesar do efêmero sucesso profissional e econômico, representam uma raça inferior e comedora de bananas; e (iv) finalmente, pela imposição, aos resistentes e insistentes, de padrões táticos escolásticos criados para superar a falta de qualidades técnicas e de improvisação, de que não padecem, matando-lhes as características inatas que os distinguem dos demais.
No plano interno, a apropriação do jogo de bola por pessoas que ostentam interesses próprios, geralmente econômicos ou políticos, e que não raro desconhecem os fundamentos básicos do esporte, contribuem e justificam a capitulação da nação.
A nação de chuteiras está, na verdade, descalça, e não sobre um campo de várzea: mas de joelhos, sobre o asfalto, pedindo benção e perdão, a todos, pelas suas virtudes.
Desde 1982 o futebol brasileiro vem sendo exposto a toda sorte de expiação, interna e externa, que o conduz à posição que se quer vê-lo – e como, de fato, se viu, no Mineirão, em 2014: dominado, inerte, inanimado.
As raras exceções, protagonizadas por jogadores fenomenais, que se formam ao acaso (e apesar da falta de estrutura básica formal, privada ou pública) remetem, no entanto, à origem da formação do país, que nega Caio Prado Júnior e, de algum modo, tributa a Gilberto Freyre a potencialidade reprimida, mas inata, do brasileiro – e, sobretudo, do seu futebol.
Gritou-se independência em 1822; em ato formal, libertou-se o escravo em 1888; bradou-se a República em 1889; depois, em mais de 120 anos, o país conviveu com inúmeros movimentos políticos ou econômicos, uns mais ou menos nacionalistas, outros mais ou menos liberalizantes. Em seu projeto de formação do Novo Estado Nacional, Getúlio construiu os alicerces para formação da indústria brasileira, mas não se atentou à importância do jogo das elites e do povo. Os governos impostos pelo Regime Militar apropriaram-se do esporte como elemento de propaganda, negando-lhe, porém, qualquer possibilidade de libertação e desenvolvimento.
Nos anos que se seguiram à Constituição de 1988, muitos projetos surgiram, alguns se institucionalizando; mas nenhum, até hoje, teve o mérito de resolver o problema revelado por Sócrates, o Brasileiro: o reconhecimento de que o futebol não é circo, mas ciência; e seus agentes, os jogadores, numa visão pouca romântica, tecnologia.
É assim que o Governo, o Congresso e os agentes que pretendem discutir um novo modelo para o futebol devem encará-lo: como o seu maior bem, cultural e econômico.