Abhner Youssif Mota Arabi
Desde a definitiva cisão entre o Estado e a propriedade, o fenômeno da tributação passou a ser medida inevitável à manutenção do poder público. Após o deslocamento da propriedade para fora do patrimônio estatal, passou-se a mais fundamentalmente depender das receitas denominadas derivadas, as quais são, em grande parte, constituídas por recursos tributários.
É certo, porém, que esse poder conferido ao Estado de instituir tributos e exigir o seu pagamento por seus cidadãos não se dá ilimitadamente. Se assim fosse, ter-se-ia uma situação de insegurança dos particulares diante de tamanho poder estatal. Como decorrência de um Estado Constitucional e Democrático de Direito – que impõe limites não apenas aos cidadãos, mas também ao poder público –, a atuação tributária estatal apenas é legítima se enquadrada nos limites estabelecidos pelo ordenamento jurídico. Tem-se, assim, como exemplo dessas limitações, os princípios tributários (como os elencados no art. 150 do texto constitucional) e as imunidades tributárias (previstas no art. 150, VI, da CRFB/88). Alguns desses princípios, aliás, decorrem da proteção jurídica da previsibilidade e da confiança do cidadão, isto é, de sua segurança, como são os casos dos princípios da irretroatividade, da legalidade, da anterioridade anual e nonagesimal. De todo modo, em linhas gerais, essas limitações, juntamente com as outras disposições constitucionais tributárias e com os demais atos normativos que regem a matéria, compõem o que comumente se denomina de sistema tributário nacional.
Por outro lado, em uma acepção mais abrangente e mais adequada às preocupações que um Estado Democrático de Direito deve ter, tem se construído o conceito de matriz tributária, que, resumidamente, pode ser definido como "as escolhas feitas em um determinado momento histórico no campo da ação social, no que diz respeito ao fenômeno tributário"1. Tal referencial teórico apresenta uma interpretação mais adequada do fenômeno tributário em geral, já que considera não apenas as normas e institutos que regem a relação jurídico-tributária, mas também as consequências – fiscais e extrafiscais – das escolhas político-legislativas sobre a tributação.
É sob tal perspectiva teórica que os textos veiculados nesta coluna têm se apresentado, buscando evidenciar algumas distorções e iniquidades da matriz tributária brasileira. Em especial, destaca-se um forte caráter regressivo, isto é, cidadãos de menor renda contribuem mais do que aqueles de maior renda, fato que se expressa em grande medida pela forte tributação sobre o consumo, em desrespeito a postulados constitucionais como o da capacidade contributiva e o da justiça social.
Nesse mesmo contexto teórico, mas sob outro viés, o presente texto pretende lançar luz sobre outra origem de possíveis iniquidades nas políticas de tributação adotadas no Brasil: as distorções do federalismo fiscal. Em uma breve e direta anunciação, a matriz tributária brasileira tem se estruturado de forma bastante centralizada no ente federal, em prejuízo aos entes federativos menores – apesar de juridicamente iguais –, em verdadeiro desacordo às premissas constitucionais de um federalismo de cooperação.
A forma federalista de Estado adotada pela Constituição de 1988 estrutura-se em nosso país a partir da proclamação da república em 1889 e do subsequente texto constitucional de 1891. Fundado em raízes históricas que remontam ao período de elaboração da Constituição dos Estados Unidos de 1787, o federalismo desenvolve-se mundo afora sob diversos modelos distintos, conforme a realidade político-social na qual se estruturará, mantendo sempre, entretanto, alguns traços básicos comuns que lhe dão identidade: a existência de entes federados distintos e juridicamente iguais; as prerrogativas do autogoverno, auto-organização e autoadministração atribuídas aos entes federativos; a repartição de competências legislativas e administrativas; além da divisão das receitas públicas.
Com efeito, como em outra oportunidade já se afirmou, "dentro dessas definições mínimas, traço importante que também deve ser destacado diz respeito à divisão constitucional de recursos financeiros", já que "o orçamento dos entes federados e a aplicação das receitas que lhes competem são questões diretamente ligadas ao desempenho da autonomia de cada um deles e de suas prerrogativas atribuídas pelo regime federativo"2. Não há como se assegurar a autonomia, a auto-organização e o autogoverno sem que sejam garantidos recursos econômico-financeiros que subsidiem a concretização das decisões autonomamente tomadas. E isso não é peculiaridade do direito tributário ou financeiro, mas senão premissa básica que mesmo na vida cotidiana sem dificuldade se constata.
É ínsito a tal forma de estado que a unidade política conviva com a possibilidade de diversidade de organização local e regional, conciliando os diversos interesses e realidades existentes em cada ente federado. Não se trata, porém, de estrutura estática, pelo que a organização da arquitetura institucional e a interação entre as forças políticas oscilam em movimentos pendulares, ora em direção à centralização, ora em direção à descentralização, o que implica uma maior ou menor autonomia local diante da unidade nacional.
Mais recentemente, porém, tem-se notado uma tendência centralizadora na repartição das competências constitucionais entre os entes federativos, as quais se concentram junto ao ente federal. Para tal fenômeno, se apontam duas razões principais: a própria engenharia constitucional brasileira (privilegiando, por exemplo, competências privativas e exclusivas da União em detrimento de competências concorrentes – arts. 21 a 24 da CRFB/88); e a postura interpretativa comumente adotada no momento de aplicação do direito (e aqui se refere especialmente ao Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição), a qual tradicionalmente se inclina à prevalência das ações federais unitárias em detrimento das iniciativas locais. É dizer: apesar de se afirmar a existência de um federalismo de cooperação, no qual os entes autônomos cooperam igualmente para a realização dos objetivos constitucionais, a realidade brasileira tem se aproximado muito mais de um federalismo de integração, expressão que se atribui a Alfredo Buzaid3, cunhada em uma realidade distante da democracia que hoje afirmamos ter.
No âmbito tributário, essa tendência centralizadora se revela pelo fortalecimento das receitas percebidas pela União e uma maior dependência dos entes menores em relação aos repasses federais de recursos financeiros. De modo mais direto, nota-se a proliferação de contribuições – forma tributária de criação quase que exclusiva da União e que, em regra, não integra a discriminação constitucional de composição dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios –; o reflexo negativo de políticas exonerativas federais nos valores repassados aos mencionados Fundos de Participação – montantes que, a rigor, representam receitas originárias e de titularidade inicial dos respectivos entes federativos, nos termos dos artigos 159 e seguintes da CRFB/88; a eternização da sempre temporária Desvinculação de Receitas da União (DRU). A partir de tal realidade, especialmente em relação aos Estados e municípios de menor arrecadação tributária e diminuta capacidade financeira, exsurge um cenário de dependência para com o ente central, pelo qual se agravam as desigualdades sociais regionais (muitas vezes decorrentes de razões geográficas, climáticas e sociais, por exemplo), imprimindo mais essa distorção à matriz tributária brasileira.
Não bastasse, o instrumento constitucional dos Fundos de Participação, idealizados para que fossem supridas tais necessidades, tem sofrido sucessivas debilitações, pelas quais as enunciadas distorções se intensificam. Nesse sentido, destaca-se, por exemplo, o recente julgamento do RE 705.423 pelo Supremo Tribunal Federal, em que se assentou como tese conclusiva ser constitucional a "concessão regular de incentivos, benefícios e isenções fiscais relativos ao Imposto de Renda e Imposto sobre Produtos Industrializados por parte da União em relação ao Fundo de Participação de Municípios e respectivas quotas devidas às Municipalidades". Prejudica-se os entes federativos sob duas frentes: de um lado, o ente federal aumenta a percepção de recursos financeiros por meio das contribuições tributárias, cuja criação a Constituição lhe reserva; de outro, concede diversos benefícios fiscais em relação aos impostos de sua competência, acarretando em decréscimo direto da arrecadação dos entes federativos menores.
Sucessivamente, bloqueada a via das transferências constitucionais obrigatórias, resta aos entes federados menores o pedregoso caminho das transferências voluntárias, em que é maior o espaço de discricionariedade política e negociação, o que acaba servindo de meio à imposição de severas restrições e condicionamentos por parte do ente central, representando, uma vez mais, novo mecanismo de diminuição do exercício da autonomia dos entes locais/regionais. Por meio de tal distorção federativo-tributária, permite-se a maior influência da União na realização das políticas públicas dos entes subnacionais e de sua atividade tributária e financeira.
Note-se que, dentre outros fatores, a situação de desigualdade econômico-financeira entre os entes federativos na obtenção de receitas públicas tem se mostrado atualmente evidente diante do grave cenário de crise dos Estados, por exemplo, que os conduz a uma maior dependência em relação à União, na contramão dos fundamentos teóricos do federalismo. Contrariamente, porém, as competências e os serviços públicos que devem ser realizados pelos Estados-membros e pelo Municípios não são reduzidos, atingindo-se uma desproporção entre as atividades estatais e os necessários recursos financeiros que as subsidiam.
É necessário ter-se em conta a noção de que os direitos têm custos4 e que, ante à escassez de recursos e a infinitude das necessidades, há que se prezar por uma maior eficácia alocativa, não apenas de forma a privilegiar as classes sociais menos favorecidas, mas também que busque uma maior proporcionalidade e equidade na distribuição dos recursos públicos entre os entes federados. Não que a mera existência de mais recursos destinados aos entes subnacionais necessariamente implica em uma maior eficácia alocativa; mas trata-se de distorção a ser corrigida. É que também as determinações jurídicas de uma sociedade possuem fortes influências sobre as transformações sociais e econômicas que ali se passam, determinações dentre as quais se incluem as teorias e políticas de tributação adotadas por uma nação e as consequências dessas escolhas na formação de sua matriz tributária.
Ao se primar por escolhas que conduzem a uma maior centralização dos recursos públicos e da determinação das políticas públicas, perde-se a oportunidade de privilegiar iniciativas locais que poderiam ser úteis não só a problemas decorrentes das peculiaridades regionais (já que não se pode conferir tratamento igual a problemas e realidades diferentes), mas que também poderiam funcionar como verdadeiros laboratórios democrático-institucionais de soluções possivelmente servíveis aos problemas nacionais. Nesse sentido, colaciona-se a lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto:
"Ao invés de assumir os riscos envolvidos nas grandes apostas de reforma global das instituições nacionais, como tem sido feito, talvez seja melhor experimentá-las no plano local de governo. A aplicação de novas ideias ou arranjos políticos em algum estado ou município precursor pode servir como teste. É claro que muitas experiências podem dar errado, mas os riscos para a sociedade são menores do que quando se pretende realizar reformar nacionais de um só golpe. Não por outra razão, o Juiz Louis Brandeis, da Suprema Corte norteamericana, chamou os governos estaduais de 'laboratórios da democracia': 'É um dos felizes incidentes do sistema federal que um único e corajoso Estado possa, se os seus cidadãos escolherem, servir de laboratório; e tentar experimentos econômicos e sociais sem risco para o resto do país'."
É preciso, portanto, revistar a estruturação das vertentes fiscais e financeiras do pacto federativo, buscando conferir maior descentralização à percepção de recursos públicos, privilegiando os entes subnacionais e o pluralismo político, erigido como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, V, da CRFB/88). É necessário voltar o pêndulo federalista em direção aos entes subnacionais, de forma a possibilitar o exercício direto, autônomo e efetivamente independente de sua autonomia, sob pena de subversão do próprio modelo federalista. Trata-se de mais uma distorção enunciada na matriz tributária brasileira, sobre a qual pretende-se ter lançado alguma luz.
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1 GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (org.). Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 32.
2 ARABI, Abhner Youssif Mota. Desdobramentos Financeiros do Federalismo Fiscal: participação no resultado da exploração de petróleo e o bônus de assinatura. In: GOMES, Marcus Lívio; ALVES, Raquel de Andrade Vieira; ARABI, Abhner Youssif Mota. Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional. Curitiba: Juruá, 2016, pp. 13/14.
3 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O estado federal brasileiro. In: Revista da Faculdade de Direito (USP), v. LXXVII, p. 1, 1982.
4 HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York/London: W. W. Norton & Company, 1999.
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