Vívian Cintra Athanazio
Conforme já adiantado pelos textos anteriormente publicados na coluna, além das concepções doutrinárias mais tradicionais e menos abrangentes, matriz tributária pode ser entendida como o conjunto de fundamentos e alicerces que determinam a configuração do próprio sistema tributário.
Tal concepção surgiu da necessidade de uma análise que aproximasse o fenômeno da tributação da realidade brasileira. Por isso, foi proposta, além do mero exame do sistema tributário brasileiro1, consubstanciado nas normas atinentes à atividade arrecadatória do Estado, a investigação da matriz tributária, a fim de se adentrar na análise das escolhas e das opções previamente estabelecidas no âmbito da tributação, para a fixação dos limites do Estado e da própria Constituição2.
O desenvolvimento dessa concepção de matriz tributária não ocorreu pela imprestabilidade da análise da tributação sob o enfoque do sistema tributário. Pelo contrário, se deu em decorrência de sua limitação aos aspectos internos da tributação – sistema normativo – e de sua reduzida capacidade de ser considerado quando da análise do fenômeno tributário sob o viés social e econômico, necessário para o pensamento e a crítica da realidade, a fim de, inclusive, desenvolver as ferramentas necessárias para a redução de desigualdades e de disparidades3.
Assim, entende-se que o desenvolvimento da ideia da matriz tributária possibilita a identificação e a consideração das características econômicas, sociais e políticas que permeiam o processo de escolhas, que, por sua vez, culminam nas consequências geradas pela manutenção do sistema tributário e financeiro nas suas atuais conjunturas.
A Receita Federal do Brasil monitora a carga tributária, divulgando, anualmente, relatórios importantes para a identificação e análise das características da nossa matriz tributária. De acordo com o relatório recentemente divulgado, relativo ao ano de 2015, a carga tributária bruta atingiu o patamar de 32,66% do Produto Interno Bruto (PIB)4.
O referido relatório divide o total da carga tributária em seis bases de incidência: renda, folha de salários, propriedade, bens e serviços, transações financeiras e outros. Verifica-se que 49,68% de toda a arrecadação de 2015, que equivale a 16,22% do PIB, decorreu da tributação sobre bens e serviços, ou seja, sobre o consumo. A renda representou 18,27% de toda a arrecadação, alcançando 5,97% do PIB. Por sua vez, a propriedade contribuiu com 4,44% do total arrecadado, correspondendo a 1,45% do PIB5.
A partir desses dados, percebe-se que a conformação da tributação brasileira onera excessivamente o consumo, em detrimento das outras bases econômicas, como o patrimônio e a renda, existindo, ainda, a nítida preferência pelos tributos indiretos. Essas características contribuem para um aumento desenfreado da regressividade, com a imposição de severos reflexos para os cidadãos com menor capacidade contributiva.
Não por outra razão, Benedito Ferreira, ao tratar das consequências nefastas da tributação excessiva do consumo, afirmou que acaba-se por onerar "[...] até mesmo os que vivem da caridade pública, quando, usando o dinheiro que recebem das esmolas, eles compram para uso ou consumo qualquer mercadoria ou produto"6.
Tal realidade, por óbvio, gera distorções desastrosas para a consecução de objetivos preciosos, como a redução das desigualdades e o desenvolvimento social. Afinal, uma tributação equitativa necessariamente depende da observância da capacidade contributiva, para que escolhas que privilegiem uma tributação mais justa, no sentido de arrecadar mais recursos dos contribuintes que têm mais condições, seja efetivamente alcançada, quando menos idealizada ou almejada7.
Quando há preferência da tributação sobre o consumo, em detrimento da renda e do patrimônio, privilegia-se base econômica que torna difícil, até mesmo sob o viés técnico, a consecução da observância da capacidade contributiva8.
Essa conclusão é de fácil constatação. Por exemplo, o preço de determinado produto nas prateleiras dos supermercados não varia de acordo com a renda auferida pelo consumidor que efetuará o pagamento no caixa. O cidadão que ganha apenas um salário-mínimo, pagará, ao final, o mesmo preço que um outro individuo, por sua vez, milionário, suportará.
Tal situação não tende a ser replicada quando há tributação da renda e do patrimônio. Em razão dessas bases econômicas variarem sensivelmente para cada contribuinte, é possível a determinação de critérios objetivos mínimos que culminem, pelo menos, na tentativa da observância da capacidade contributiva individual, imprimindo características como a progressividade.
Não está aqui a se dizer ou afirmar que a tributação da renda e do patrimônio não ocorre. Contudo, o olhar crítico da atual matriz tributária leva à conclusão de que a incidência sobre o consumo, que, em regra, extrai recursos de todos os contribuintes sem levar em conta os fatores individuais, ainda prevalece como a principal fonte de arrecadação do Estado e essa não é, pelas consequências supramencionadas, a decisão que mais privilegia a justiça fiscal e social.
Além dos prejuízos impostos ao alcance da tributação equitativa, da escolha pela tributação excessiva do consumo também decorre outro problema: a falta de transparência fiscal, entendida em acepção ampla, envolvendo tanto a transparência na arrecadação, como nos gastos públicos e no processo de escolha dessas despesas.
A necessidade imediata da transparência fiscal decorre não só do fato de a atividade estatal arrecadatória impactar diretamente na esfera patrimonial do cidadão. Além do nítido impacto patrimonial e econômico, há que se concordar com o entendimento esposado, por exemplo, por Benedito Ferreira, já citado, que afirma a moral como o maior fundamento e alicerce do tributo, em razão das suas finalidades e consequências9.
Em razão disso, é grave ainda enfrentarmos dificuldades homéricas para identificar o que e quanto pagamos a título de tributo ou qual parcela do preço efetivamente se refere à carga tributária.
Tais entraves, extraídos, por exemplo, da enorme quantidade de normas que regem o sistema tributário, por certo, decorrem de fatores que só poderão ser sanados por meio da esperada Reforma Tributária, uma vez que dependem de revisões legislativas e políticas extremamente sensíveis.
Ocorre que as apontadas dificuldades, enfrentadas até mesmo por quem atua diariamente na área fiscal, explicam, em termos, a resistência do contribuinte ao pagamento dos tributos, em razão do grau da resignação também variar de acordo com a transparência na arrecadação e aplicação dos recursos, bem como em função do grau de consciência e educação da sociedade, dentre outros fatores10, que envolvem, por exemplo, as escolhas e a eficiência nos gastos públicos.
Por isso, são louváveis as iniciativas políticas e legislativas que implementem técnicas que objetivam melhorias na identificação, pela sociedade em geral, da distribuição e incidência da carga tributária.
Nesse sentido, merece destaque o advento da Lei 12.741/12, batizada de "Lei da Transparência Fiscal", "Lei da Nota Fiscal", "Lei de Olho no Imposto" ou "Lei do Imposto na Nota", que instituiu a obrigação de "[...] constar, dos documentos fiscais ou equivalentes, a informação do valor aproximado correspondente à totalidade dos tributos federais, estaduais e municipais, cuja incidência influi na formação dos respectivos preços de venda"11.
Talvez ainda seja cedo para avaliar os impactos da adoção de tal medida na consciência do cidadão acerca da distribuição da carga tributária e, consequentemente, na cobrança de mudanças no sistema, de forma a permitir a melhor distribuição dos ônus perante a sociedade.
Contudo, aliado a outros instrumentos, que inclusive trazem benefícios diretamente perceptíveis aos contribuintes, como a devolução de créditos tributários, exposta no artigo CPF na nota?, anteriormente publicado na Coluna, as exigências e inovações previstas pela lei 12.741/12, bem como pelo seu regulamento, o decreto 8.264/14, já são um avanço significativo para que, um dia, se alcance efetivos avanços na transparência fiscal, mormente porque decorreu de iniciativa popular, a partir da colheita de assinaturas pela campanha nacional De Olho no Imposto, conduzida pela Associação Comercial de São Paulo.
Diante do exposto, conclui-se que a consecução de uma tributação mais justa e equânime perpassa, necessariamente, pela revisão das escolhas de bases econômicas de incidência.
Ademais, também é imprescindível o desenvolvimento das ferramentas à disposição do legislador para a utilização dos tributos não só nos seus efeitos meramente arrecadatórios (fiscais), mas, inclusive, nos seus efeitos de mudanças das conjecturas econômicas e sociais, ou seja, considerar e utilizar o caráter da extrafiscalidade dos tributos, a favor dos avanços na redistribuição de renda e na redução das desigualdades sociais e econômicas, que há tanto tempo assolam a sociedade brasileira.
Da mesma maneira, não se pode ignorar a importância da melhoria e do desenvolvimento dos instrumentos de transparência fiscal, principalmente na condução e demonstração dos gastos públicos e na aplicação dos recursos advindos da tributação, até mesmo para fins de conformação social quando do desembolso de quantias para fazer frente às despesas estatais.
Por isso, medidas que aumentem o controle social e a responsabilização dos gestores e representantes pelos gastos públicos devem ser cada vez mais defendidas e estimuladas.
Tais conclusões decorrem do fato de que uma população mais consciente da origem e do destino dos recursos aplicados pelo Estado tende a ser menos resistente ao pagamento de tributos12, principalmente quando é possível perceber, usufruir e participar do processo de escolha da definição das contraprestações, que os recursos advindos da tributação colocam à disposição da sociedade no aparelhamento público (saúde, educação, alimentação, moradia etc).
Referências bibliográficas
BALTHAZAR, Ubaldo Cesar; ALVES, André Zampieri. A resistência ao pagamento de tributos no Brasil: uma breve análise histórica e humanística. In: BALTHAZAR, Ubaldo Cesar (org.). Estudos de Direito Tributário. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, pp. 171-186.
FERREIRA, Benedito. A História da Tributação no Brasil – Causas e Efeitos. Brasília: 1986.
GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil. In: GASSEN, Valcir (org.). Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, pp. 27-50.
_____________. Tributação na origem e destino: tributos sobre o consumo e processos de integração econômica. 2 ed. rev. e mod. São Paulo: Saraiva, 2013.
Receita Federal do Brasil. Estudos Tributários. Carga Tributária no Brasil – 2015 (Análise por Tributo e Bases de Incidência). Acessado em 22/9/2016.
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1 Ao tratar da concepção de sistema tributário, GASSEN (2012, p. 29) afirma que "[...] é um conjunto composto por normas jurídicas que regulam a atividade tributária no campo das relações jurídicas entre o contribuinte e o ente tributante". O autor complementa, explicando que também englobam a concepção de sistema tributário as normas que tratam dos princípios e das imunidades, da competência tributária e das espécies de tributos.
2 GASSEN (idem), ao apresentar a obra Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário (ob. cit.), afirma que "[...] quando se faz referência ao Estado ou à Constituição, v.g., ao Estado de Bem-Estar Social, ao Estado Democrático de Direito, ao Estado Constitucional, ao Estado Social, à Constituição Cidadã, entende-se que é necessária uma compreensão adequada do Direito Tributário, em especial da matriz tributária brasileira. Esta entendida como as opções feitas de antemão, no âmbito da tributação, que estabelecem, no horizonte de sentido, os limites do Estado e da Constituição".
3 "[...] outra dificuldade do emprego da expressão sistema tributário é que por intermédio dela não se tem contemplado a discussão em relação a carga tributária, o montante e como essa é dividida entre os contribuintes (pessoas físicas e jurídicas) e sua respectiva capacidade contributiva". (GASSEN, 2012, p. 31)
4 Tabela 1, constante a p. 6 do Relatório de 2015. Acessado em 22/9/2016.
5 Tabela 9, constante a p. 13 do Relatório de 2015. Idem.
6 FERREIRA, 1986, p. 171.
7 Para FERREIRA (1986, p. 177), equidade é "[...] o repartir dos gravames de maneira justa, proporcionalmente à capacidade de cada um, observando, assim, a chamada 'igualdade natural'".
8 Nesse sentido, GASSEN (2013, p. 100) observou que "O sucesso da implantação dos tributos especiais sobre o consumo, assente na ideia de gravar bens de amplo consumo, firma o princípio da regressividade no sentido de onerar de forma mais gravosa a população que detiver uma menor renda".
9 "Sabemos que o alicerce do tributo é, essencialmente, de conteúdo ético. A moral é seu maior fundamento, tendo-se em vista as suas finalidades e aplicações. Constitui o imposto um dever de todos, e, na medida de sua compreensão, à luz da justa exação e correta aplicação dos seus resultados, passa o mesmo a ser encarado como um direito fundamental do cidadão". (FERREIRA, 1986, p. 176)
10 BALTHAZAR; ALVES, 2004, p. 176
11 Art. 1º da lei 12.741/12.
12 Nesse sentido, pertinente a citação aos "efeitos anestesiantes e irritantes" dos tributos indiretos e diretos, respectivamente: Cabe notar que este efeito de "anestesia fiscal" é bastante perceptível nos tributos indiretos em que a regra é a repercussão econômica dos tributos, e esta é a que lhes confere a espécie. Nos tributos diretos, pela ausência de repercussão, cada contribuinte tem como aferir de pronto o montante de tributo que está pagando. Desta percepção decorre que os tributos indiretos são denominados muitas vezes de tributos "anestesiantes" e os diretos "irritantes".(GASSEN, 2013, p. 104)