Marizalhas

A fome desprezada

O texto trata da questão da fome e da falta de moradia na cidade de São Paulo, abordando a indignação do autor frente à indiferença social e à insensibilidade dos políticos em relação ao sofrimento dos mais vulneráveis.

30/7/2024

Andava eu por uma rua de São Paulo quando mais uma vez presenciei uma enorme fila de mulheres, crianças, velhos, moços, aguardando que lhes dessem comida. São vários os pontos da cidade onde se distribuem alimentos aos carentes. A sua subsistência depende exclusivamente dessas iniciativas de pessoas, famílias e instituições. Mesmo as entregas individuais feitas aos sem teto minimizam os efeitos de uma trágica realidade, que é a fome vitimando milhares de brasileiros.

Um ato de solidariedade que representa o mínimo a ser feito por aqueles que possuem um mínimo de sentimento de humanidade, compaixão e amor ao próximo.

Compreende-se o bem feito a quem necessita. Até o mal produzido a alguém pode ser entendido, embora não compactuado. Difícil de compreensão, no entanto, para mim, é a indiferença diante do sofrimento alheio. Com maior razão quando essa indiferença é causada pela sobreposição de um interesse pessoal àquele de quem necessita de amparo.       

Exemplo acabado de insensibilidade social foi dada recentemente por vereadores da Câmara Municipal de São Paulo ao apoiarem um projeto, que em boa hora foi retirado. Ele proibia a entrega de algum alimento a morador de rua. Um prato de arroz com feijão, um pão ou uma simples banana custaria ao doador uma multa de elevado valor. Incrível, inacreditável, mas verdadeiro. Vereadores impedem a caridade, a benemerência, impedem que se mate a fome de quem tem fome.

Não se imagine que tenha sido uma iniciativa isolada de um vereador. Claro que antes de apresentar o projeto obteve o prévio apoio de vários colegas para apresenta-lo em conjunto. Todos eles, na verdade, conscientes ou não estavam sendo caixa de ressonância de um desejo de parcela da sociedade paulistana. Parcela insensível e portadora de um egoísmo atroz.  Não imagino que o egoísmo chegue ao ponto de se desejar o pior para os sem teto. Parece-me que o seu desinteresse pela dor alheia  os leve a não querer  o sofrimento, ou melhor, não querer apenas presenciá-lo, vale dizer: tirem do meu campo de visão e fica tudo bem.   

Mesmo com a ressalva acima, a gravidade da dolorosa questão aumenta de intensidade quando se sabe que sua existência não estava apartada de um querer coletivo. Ao contrário, embora não haja pesquisa a respeito, ao menos que seja do meu conhecimento, não tenho dúvida da aquiescência da opinião pública, parte dela, à deplorável ideia.

Eu não estou com suposição, com alguma cisma, com mera hipótese do acolhimento da absurda proposta legislativa. Falo com base em uma experiência real. Ao comentar o malfadado projeto com um colega, velho e experiente advogado, ele teve a desfaçatez de dizer-me que a iniciativa não era “das piores“. Explicou que enquanto fossem alimentados, os ocupantes das ruas delas não sairiam. Raciocínio que parece refletir um pensamento não isolado, mas adotado pelos insensíveis, desprovidos de humanidade, integrantes de uma elite econômica que parece viver apartada da realidade. Para eles basta que as mazelas sociais não sejam vistas, não se situem próximas.

Saindo das ruas para onde deveriam ir os seus moradores? Essa pergunta teria resposta imediata se dispuséssemos de abrigos para todos os sem teto. Mas não existem. O Poder Público mais uma vez é negligente. Repito: qual o destino desses infelizes que só possuem a rua para acolhe-los?  Fora ela, apenas imagino a última e definitiva morada para abriga-los, local que os nivelaram a nós, pois para lá também iremos.

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Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.