Marizalhas

Povoar o centro para ressucitá-lo

Ações esporádicas de solidariedade e providências governamentais de pouca efetividade ficam muito além das necessidades reais da população de rua e permanecem distantes da solução do problema, que só se dará quando todos tiverem um teto que os abrigue em condições dignas de habitação.

22/6/2023

Não me impressionam no centro da cidade os moradores de rua, pois esses infelizmente habitam São Paulo em todos os seus bairros e cantos. É o reflexo de uma trágica situação de desequilíbrio social que se agrava há anos e encontra a imutável insensibilidade por parte expressiva da sociedade e a quase inércia absoluta do Estado como respostas. Ações esporádicas de solidariedade e providências governamentais de pouca efetividade ficam muito além das necessidades reais da população de rua e

permanecem distantes da solução do problema, que só se dará quando todos tiverem um teto que os abrigue em condições dignas de habitação.

Abstraindo-se essa trágica questão social, assim como o estado de deterioração de inúmeros imóveis, e também o  precário estado das calçadas e do piso das ruas, o fato que mais me aflige e chama a minha atenção é o abandono físico das ruas do centro. Entenda-se esse abandono como a ausência de pessoas circulando por espaços anteriormente quase intransitáveis, como diriam os antigos apinhados de gente. 

Quer o chamado “centro velho,” quer aquele ligado pelo Viaduto do Chá, o “centro novo” que já é vetusto, as ruas abrigam poucas lojas abertas e um número cada vez menor de transeuntes. Essa característica empresta a certas regiões um triste ar de desolação, na verdade a aparência de um corpo desprovido de alma. O que ainda permanece são as histórias de um centro pungente no qual fervilhavam todos os sentimentos de um povo que emprestava à cidade características de um burgo em permanente crescimento industrial, financeiro e cultural.

As velhas ruas que circundavam a Praça da Sé, tais como  Riachuelo, Senador Feijó, Benjamin Constant, Quintino Bocaiuva, 15 de Novembro, Direita, São Bento, Largo de São Francisco, um pouco mais abaixo José Bonifácio, Líbero Badaró, Páteo  do Colégio, Alvares Penteado, Boa Vista, do Comércio, Patriarca carregam uma carga repleta de eventos históricos e de lirismo, plantado pelos vates,  estudantes da Velha Academia.

Sobre cada um desses espaços foram debruçadas epopeias que marcaram a história de São Paulo, cada uma delas como reflexo de sonhos e de ideais que impulsionavam e davam razões de viver para as respectivas gerações.

Na Praça da Sé, os inesquecíveis comícios das Diretas Já. Anteriormente, os apelos cívicos de trinta e dois, as campanhas eleitorais e até um sangrento evento que envolveu integralistas e comunistas, na chamada Guerra da Praça da Sé, dentre inúmeros outros.

Os acadêmicos do Largo de São Francisco marcavam a cidade com as suas fanfarronices, críticas, zombarias, troças, por meio dos “trotes” e das “peruadas”. Por outro lado nas passeatas que ocupavam as ruas acima citadas procuravam levar à população mensagens em prol da redemocratização do país, durante a ditadura Vargas; na Revolução de 1932; clamaram pela participação do Brasil na 2º guerra mundial ao lado dos aliados; proclamaram a necessidade da anistia aos presos políticos e ajudaram a levantar a Nação em prol das eleições diretas. 

 

Voltando às ruas e às suas efemérides: a Líbero Badaró assistiu ao assassinato do Jornalista que lhe emprestou o nome; o Largo de São Bento presenciou a aclamação de Amador Bueno como Rei dos Paulistas, título não aceito; a Rua de São Bento possuía uma cruz em sua extremidade, que segundo a lenda teria sido furtada pelos estudantes. A verdade é que ela desapareceu. O mesmo destino teve o badalo do sino da Faculdade, que foi furtado para que não mais fosse acionado para chamar os alunos às aulas.  

No final da hoje rua Cristovam Colombo, lateral ao Largo de São Francisco, havia um barranco que produzia um eco muito forte e nítido. Consta que o poeta Olavo Bilac quando estudante se dirigia à sua beira e gritava “boa noite” para ouvir de volta a retribuição da gentileza “boa noite”.

Essas mesmas ruas e aquelas situadas após o Viaduto do Chá eram ocupadas pelos estudantes que com grande frequência faziam serenatas àquelas que desejavam conquistar. Como regra não despertavam o interesse das donzelas, mas sim ganhavam baldes de água fria acompanhados do próprio balde arremessado pelos futuros ex-sogros. Acadêmicos vestidos de mulher perambulavam pelas vias da cidade alguns portando armaduras medievais e outros armados de palmatória prontos para castigar algum notívago que era mandado para casa.

As hoje abandonadas vias do centro abrigavam bares e restaurantes que se fixaram na memória degustativa e sentimental de todos os que, como eu, os frequentavam diariamente, impossibilitados de ir fazer refeições em suas próprias casas, especialmente em razão do horário do expediente forense. Gouveia; Corso; Campestre; Itamarati; Ouro Velho; Amarelinho; os japoneses da Liberdade; Mon Ami; Bar das Sardinhas; Terraço e outros eram locais também de confraternização e comemorações. Abrigavam especialmente advogados, promotores, juízes, estudantes, funcionários do Poder Judiciário, enfim acolhiam toda a família forense e possibilitavam um congraçamento que tornava ameno e agradável um convívio muitas vezes, durante os trabalhos judiciais, marcados, não raras vezes por contrariedades e alguns dissabores.

Imagino que o Centro de São Paulo possa um dia voltar a ser um expressivo núcleo de sociabilidade para os paulistanos numa conjugação de pessoas com uma cidade marcada por história, arquitetura extraordinária e um acendrado simbolismo sentimental e afetivo. 

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Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.