Marizalhas

Réquiem para uma livraria

O réquiem de uma livraria não representa uma simples manifestação por meio de oração ou de canto pela sua perda. É mais, deve ser mais. Precisa representar um clamor vigoroso contra as causas desse trágico evento.

15/2/2023

O réquiem de uma livraria não representa uma simples manifestação por meio de oração ou de canto pela sua perda. É mais, deve ser mais. Precisa representar um clamor vigoroso contra as causas desse trágico evento.

Pois bem, no caso da Livraria Cultura, os administradores de sua massa falida, os advogados, juízes, curadores e credores poderão apontar as causas jurídicas e de natureza financeira. Para nós, leitores, seus velhos frequentadores, uma só e fatal causa: o gigantismo. É claro que essa irrefreável e irresponsável ânsia de crescimento, portanto de lucro, tem uma única causa, pecaminosa e criminosa: a ganância.

A cultura começou, salvo engano, no Conjunto Nacional. Pelo menos eu a conheci lá. Era menor, muito menor do que era quando se foi. Simpática localização, com simpáticos atendedores. Fácil de se encontrar os livros desejados. Havia mesinhas fora, onde as pessoas sentavam-se e desenvolviam tertúlias literárias. Eu nunca delas participei, pois simples rábula jamais me aventurei nessas lidas intelectuais. Mas gostava de ver os que ali estavam. Dentre eles via um que se tornou meu querido e imprescindível amigo: Ignácio de Loyola Brandão. A nossa amizade surgiu em um evento na Associação dos Advogados de São Paulo. De lá para cá, eu não mais o larguei.

Voltemos às origens da Cultura. Não sei se foi ela, acho que não, mas na época introduziu-se a possibilidade de se ter um cadastro, um cartão de cliente. Isso facilitava e instigava as compras. Na verdade, estou me  lembrando que o crédito para aquisição de livros foi introduzido pelo velho livreiro Saraiva. Tornou-se ele um benfeitor dos  estudantes de Direito que podiam adquirir as obras exigidas pelos  mestres da São Francisco com facilidade. Durante anos estudantes do Largo e de outras faculdades, como eu que me formei na Católica, podiam formar as suas bibliotecas de forma suave. Abríamos contas na loja então existente na rua José Bonifácio, antiga do Ouvidor.

Ao falar da Saraiva, lembro de tantas outras que não mais existem. Freitas Bastos, na 15 de novembro; Teixeira, na Marconi, ou teria sido na Conselheiro Crispiniano? Livraria do Povo, na Praça João Mendes; Forense, no Largo de São Francisco; Revista dos Tribunais, na Conde do Pinhal; Nobel, no Itaim; Brasiliense ou seria Civilização Brasileira na Barão de Itapetininga; o sebo Orfali na Benjamin Constante; a Livraria Vozes, salvo engano na Senador Feijó. Vários e valiosos outros sebos existentes na região da João Mendes se foram. Outros resistem, como o Messias.

Dizia eu que no caso específico da Cultura o crescimento desordenado e a fúria expansionista decretaram-lhe o fim. Soube que possivelmente sem planejamento algum, foram abertas filiais em várias capitais, algumas com dimensões até incompatíveis com o mercado local.

Em São Paulo, a ampliação da que me parece ter sido a primeira foi extraordinária. Deixou-nos, os seus assíduos clientes, entusiasmados num primeiro momento. Com o passar dos tempos viu-se e soube-se que o crescimento em outras praças já estava colocando em risco a sua higidez financeira. E agora vieram as consequências. Amargas consequências, para a cultura em geral e para os seus velhos e fiéis amigos. 

Eu torço, rezo e faço mandingas para que outras livrarias não caiam nas mesmas tentações argentárias e se lembrem que embora o lucro seja legítimo, o escopo de suas existências é a expansão da cultura, é o livro, tal como entendia o livreiro Saraiva.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.