Li um texto, primoroso texto, de Ignácio de Loyola Brandão. Abro uma pausa para declarar que a minha amizade e o meu afeto por ele constituíram um dos fatos mais prazerosos e gratificantes que me ocorreram nos últimos dez anos. Pois bem, o seu artigo versa sobre a nostalgia que sente da rua onde reside há décadas, a João Moura. A rua de hoje não é a mesma de antanho. Isso o entristece. A mudança ocorreu basicamente pela fúria imobiliária. No local de uma casa, pequena que fosse, existe um mega prédio abrigando centenas de pessoas.
Assim está sendo em toda São Paulo. Já há algum tempo, do terraço de um apartamento, durante uma festa, alguém olhando um campo de futebol me disse "que desperdício nesse campo várias torres poderiam ser erguidas". Era um empresário, na verdade um grande tonto para quem o que importa é o lucro, a cobiça, e nenhum outro valor. Não pensou no lazer, o único lazer, que aquele campo proporcionava aos moradores das redondezas, talvez o único instrumento de distração e de sociabilidade para as comunidades do entorno.
Ao ler o artigo de Loyola me veio à mente as minhas ruas Cubatão e Stella. Morava na primeira, mas vivia na segunda. Eu pertencia à gloriosa T.S. – Turma Stella. Muitos daquela época já se foram, mas ainda nos reunimos e conversamos constantemente sempre pelo telefone, nos negamos a falar online. Contamos as mesmas histórias, fazemos as mesmas gozações, rimos sonoramente os mesmos risos, queremos que assim seja até o fim. Aliás, assim é há quase setenta anos, por que mudar agora? E, que o fim demore.
Na rua Stella e adjacências nós imperávamos. O nosso reino se estendia para o centro de São Paulo, quando atingimos idade para frequentá-lo. Antes e mesmo já jovens nós ainda brincávamos na rua. As brincadeiras eram "lasca- romeu", "mãe da rua" e "mãe da lata". Todas elas eram delicados folguedos onde os atritos físicos muitas vezes levavam ao desforço, sempre entre "tapas e depois beijos", ou melhor e depois cerveja. Devo dizer que mesmo as constantes desavenças com outras turmas, em especial nas festas, eram encerradas em algum bar, que servisse álcool para menores. Começamos as nossas atividades etílicas com quinze, dezesseis anos. As brigas naqueles tempos não eram cruentas. Ninguém matava. Tapas, socos e cerveja.
Na rua Stella jogamos futebol. Naquele tempo chuteira era chanca e campo era cancha. O futebol era por nós praticado em qualquer lugar, qualquer canto onde houvesse algum espaço onde pudéssemos improvisar os gols, qualquer coisa servia para demarcá-los. Na rua Stella tínhamos um problema, pois em determinado trecho ela era uma descida. O time que ficasse na parte de baixo levava óbvia desvantagem.
Embora passassem poucos carros, o nosso problema eram os vizinhos e as janelas de suas casas. Aliás, em uma delas um pé de café existente no pequeno jardim era o nosso grande obstáculo para os chutes fortes, pois tínhamos que tomar cuidado para não o atingir. Ele era florido, verdinho, as folhas brilhavam, nós até gostávamos dele. Na casa moravam duas irmãs já de certa idade. Elas já não nutriam grande simpatia por nós. A recíproca era verdadeira. Um dia quando a bola lá caiu as intolerantes senhoras a sequestraram, não a devolveram e achamos que estraçalharam a pelota.
É claro que tínhamos que reagir. Deveríamos aplicar a Lei do Talião – dente por dente -. E o fizemos. Cortamos o pé de café e o deixamos encostado na porta de entrada da casa. Com isso vingamos a bola e aplacamos a nossa ira.
Devo confessar nunca ter sido bom de bola. Sempre era o último a ser escolhido no par ou ímpar. Quando era "escalado" eu sempre me colocava onde o time queria: longe da bola.
Um fato marcante daqueles tempos, com certeza notado também pelo Loyola, o nosso imortal, era a confraternização existente entre vizinhos. Tinha-se nas típicas pequenas casas de São Paulo da época minúsculos jardins que serviam de locais de encontro, conversa, fofocas. As pessoas paravam para papear com as que estavam nos jardins. Elas também andavam a pé. Carro para a classe média ainda era raridade. Andavam e se encontravam. Havia o maravilhoso bonde. O democrático bonde. O espaço para reflexão, leitura, cochilo, amizades e pernas, sim pernas, como um poeta indagou "Oh Deus por que tantas pernas?".
O relacionamento com os comerciantes da região é outro aspecto que também marcou a minha infância e juventude. O Nicolau do empório, Januário sapateiro, Coca e Mudinho jornaleiros, Manezinho jardineiro, Pedro barbeiro, Lili engraxate, Valinho mecânico e tantos outros que se incorporaram à minha vida e permanecem em minha memória.
Mais, muito mais eu poderia recordar das minhas ruas e do meu bairro, na verdade da vida que era risonha e franca. Talvez continue em outros escritos. Por hoje basta, para homenagear esse grande escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão e para dizer a ele não ficar triste, pois nós pelo menos temos do que lembrar.