Nunca, como em nossos dias, foi tão importante, indispensável mesmo, apelar-se para políticas compensatórias. Política na acepção de escolha, de opção. Compensações não materiais, mas no sentido de substituição do pior e do prejudicial pelo menos nocivo.
Lembro-me de um livro, talvez filme ou novela, denominado "Poliana". A personagem praticava o chamado jogo do contente. Seu escopo era, exatamente, compensatório, pois, em face de uma situação desagradável, procurava elaborar um pensamento que extraísse da mesma situação algo de bom, reconfortante, que afastasse a sua contrariedade.
Pois bem, em face da pandemia provocada pelo corona com as dolorosas e, até então, inimagináveis consequências, cada um de nós precisa cuidar da saúde mental e emocional, além da saúde corporal. À pandemia alia-se a pantomima provocada pelo cômico, senão fosse trágico, gerenciamento da crise e pelo desgoverno que nos conduz à beira do abismo.
Várias fórmulas têm sido apresentadas. Psicólogos, psiquiatras, artistas, esportistas, escritores, fisioterapeutas e tantas outros profissionais têm, em suas áreas, procurado apresentar sugestões que aliviem os sofrimentos provocados pelo isolamento.
A minha contribuição não é no campo das atividades concretas. Imaginei ser útil o exemplo de um compositor, poeta e filósofo, não de formação, mas de vida, que por meio de sua música retratou dramas do cotidiano, sempre com um viés de alegria. Soube tratar a amargura, a melancolia e a decepção com pitadas de ironia, chacota e muita graça.
As suas carências e desilusões, suas e de qualquer um, eram substituídas por deboches, piadas e caçoadas, marcadas por um humor inteligente e malicioso.
Refiro-me a Noel Rosa. Fértil compositor, morto com vinte e seis anos, compôs duzentas e cinquenta músicas aproximadamente. Suas letras retrataram as várias nuances da sociedade da época, bem como reproduziram sentimentos e emoções pessoais, de forma por vezes dramáticas, outras cômicas, mas especialmente com ironia e muita musicalidade.
Seus olhos eram sagazes e captavam o âmago de cada episódio, modo de ser pessoal e conduta social. A sua inteligência e capacidade criativa transformavam as suas letras musicais em primorosa prosa, por vezes em belas poesias.
Algumas de suas músicas expõem com graça e com leveza situações de sofrimento e de carência, tornando-as menos penosas e mais aceitáveis.
"O Orvalho Vem Caindo", mostra quem não tem onde morar, e um dia passa bem, dois ou três passa mal. Em "Conversa de Botequim", ele demanda pendurar a conta da média no cabide ali da frente; "Com que Roupa", daquele que não tem roupa para ir ao samba, mas vai se reabilitar; "Filosofia", de quem zomba da aristocracia que não tem alegria e cultiva a hipocrisia; "João Ninguém", de quem diz que muita gente tem luxo mas não tem a alegria que João tem.
Estas, entre outras, dão exemplos de sua capacidade de transformar temas áridos em músicas alegres que cantam com o otimismo um porvir melhor.
Caso estivesse conosco assistindo e amargando as consequências da pandemia, Noel saberia levá-la com fidelidade para a música. Mas, encontraria uma forma poética de fazê-lo e, com certeza, traria bem-estar ao espírito e descanso à mente. Utilizando-se do sarcasmo, da sátira e da blague, retrataria o comportamento de alguns homens públicos e apontaria aqueles que estupidamente negam o inegável e não valorizam a vida por, não se importarem com as mortes.
Ouvir Noel Rosa não diminuirá a tragédia das mortes e das infecções, mas com certeza, mostrará ser a vida dotada de duas faces, sendo preciso sempre encontrar-se a que se oponha ao lado mau, injusto e destrutivo da existência.