Não eram poucos os estudantes carentes de recursos para o próprio sustento. Muito deles, inclusive, não conseguiam sequer pagar a hospedagem em uma pensão. Viviam do favor que lhes era prestado por outros colegas em melhor situação financeira. Alguns deles, inclusive, viviam nos Conventos de São Francisco e do Carmo, onde os padres lhe forneciam abrigo e alimentação.
Lembre-se que nas repúblicas, por vezes, as refeições eram fartas, dignas das mesas mais abastadas e bem sortidas. Recorde-se também da origem dessa fatura ocasional: as rapinagens, as já conhecidas rapinagens famélicas.
Eram os perus, galinhas, porcos, procedentes dos vastos quintais da casa de então, que saciavam a fome dos acadêmicos. O Mercado Municipal também abastecia, compulsoriamente, as mesas das repúblicas e fornecia iguarias finas e boas bebidas para os famosos piqueniques nos arredores de São Paulo. Especificamente, à margem dos rios Tamanduateí e Tiete, nas imediações da Igreja da Penha, ou mesmo em Santos.
Desprovidos de recursos para frequentar os poucos restaurantes existentes em São Paulo, os acadêmicos menos favorecidos, tinham acesso a uma boa casa de pasto localizada em frente à Faculdade: a casa de Nhá Umbelina. Lá se regalavam pela manhã com bolos, doces, empadas, café, leite, mingaus e outras iguarias.
O largo nem sempre foi um Largo. Em seu lugar havia um grande quintal cercado, com um grande chafariz no meio, pertencente ao Convento e o acesso à Faculdade se dava por uma portinhola por onde entravam também os fiéis para a igreja.
Nhá Ubelina desenvolveu uma atividade que se tornou muito comum em São Paulo. Uma outra quituteira conhecida foi Nhá Maria Café, que servia suas iguarias na rua das Casinhas, depois rua do Tesouro. Lá os fregueses inclusive muitos estudantes, deliciavam-se com empadas de piquiri ou de lambari, cuscuz de bagre e de camarão de água doce e tantas outras delicias. A venda de iguarias nas ruas de São Paulo já existia desde o século XVIII. As vendedoras eram chamadas de vendeiras, e vendiam doces e salgados, principalmente na porta das Igrejas. Vendedoras de rua também eram as quitandeiras, especializadas na venda das hortaliças. A população de São Paulo protestou de forma veemente quando essas vendedoras foram obrigadas a sair da rua das Casinhas. O seu destino foi a Praça do Mercado.
As dificuldades e carências dos estudantes pobres não se limitavam à moradia e à alimentação. Não. Outras existiam e os afligiam.
Quando eram convidados para algum sarau ou baile organizados pelas famílias, especialmente por aquelas que possuíam.
A solidariedade mais uma vez se fazia presente. Bastava encontrar o colega que possuísse medidas semelhantes e, uma vez encontrado, o problema estava resolvido. Óbvio, que o colega precisaria ter pelo menos duas fatiotas.
As carências também se faziam sentir nas atividades boêmias noite a fora. Para beber, comer, adquirir algum instrumento, na hipótese de praticar a serenata, o estudante necessitava de recurso. Despesas naturais de uma vida notívaga intensa e variada tinham que ser arcadas, pois não bastava a lua e as estrelas, essas eram gratuitas. No entanto, havia, além dos bares e restaurantes, outros locais onde os gastos eram elevados e compulsórios.
Despesas com a saúde igualmente recebiam o auxilio dos solidários colegas. Enfim, a camaradagem que ultrapassava os limites da amizade e entravam no espaço da fraternidade. Eram irmãos.
Pois bem, foi com esse espírito, o da ajuda mútua recíproca que surgiu a ideia da criação de uma Sociedade que praticasse a filantropia.
Houve ampla discussão que antecedeu a criação da Sociedade, a respeito da natureza e dos meios a serem empregados para a ajuda efetiva que deveria ser prestada aos muitos estudantes pobres que cursavam a Faculdade de Direito. Havia um ponto de convergência: a indispensabilidade, ditada pela sensibilidade dos estudantes que participavam das reuniões, de prestar o auxílio fraterno aos colegas necessitados. Formavam todos, ricos, remediados e pobres em conjunto uno e indivisível de jovens ligados por um elo indestrutível, que era o de saber direito e praticar a Justiça. As diferenças políticas, monarquistas ou republicanas; eram liberais ou conservadores; escravocratas ou abolicionistas, os dividiam os conceitos políticos, mas não os sentimentos de amizade, solidariedade e amor ao próximo, e o próximo pertencia à Academia Brasileira do Largo de São Francisco.
Dentro desse espírito foi fundada a "Sociedade Filantrópica", dois anos após a instalação dos cursos jurídicos de São Paulo.
Participou desse ato, não só com sua presença física, mas como um dos idealizadores da iniciativa, o estrangeiro Júlio Frank, recém-chegado ao Brasil.
Sensível à preocupação dos estudantes Júlio discorreu sobre as iniciativas adotadas entre Universidades atentas para os mesmos problemas das carências, que atingiam também os estudantes europeus. Contou sobre a existência da Burschenschaff, que em várias faculdades da Alemanha congrega estudantes pobres que são auxiliados pelos colegas abastados.
A ideia entusiasmou os participantes de algumas reuniões preparatórias. No entanto, manifestaram a sua dificuldade em pronunciar o nome da entidade. Júlio Frank então, reduziu a longa e impronunciável palavra para Bucha, Abrasileirada, a Bucha incorporou-se não só no nosso vocabulário como deixou raízes indestrutíveis nas tradições da Faculdade de Direito. Dirigiam inicialmente a nova Sociedade, que na verdade encobria a Bucha, pois essa tinha o caráter de sociedade secreta. Figuras importantes de São Paulo passaram a integrá-la, alguns alunos da São Francisco: Antonio Mariano de Azevedo Marques, Diogo Antonio Feijó, Luiz Monterio de Orvelha, José Inácio Silveira da Mota, Manoel Alves Alvim.
Inúmeras e importantes figuras das Arcadas foram "bucheiros". No entanto, sempre pairou dúvidas sobre as suas identidades. A "Bucha" foi uma sociedade secreta. O escopo beneficente e filantrópico impedia a divulgação de quem auxiliava para evitar solicitações de mais ajuda e evitava constrangimentos a quem recebia.
A Sociedade Filantrópica, como se disse, era a entidade que encobria a Bucha, era a sua face externa. As arrecadações eram feitas em seu nome e logo nos seus primórdios angariou um número considerável de sócios. Um dado relevante é que logo passou a prestar assistência judiciária a quem necessitasse.
Pode-se dizer ter sido ela o embrião do Departamento Jurídico do Centro Acadêmico XI de Agosto, e de outros existentes em Faculdades de Direito espalhadas pelo país.
A Bucha se perpetuou em dois símbolos inestimáveis para a Faculdade e para os "bucheiros" de ontem de hoje e de sempre. A "Chave" e o túmulo de Júlio Frank existente em um dos pátios da Faculdade.
A "Chave" representava o acesso à entidade. Anualmente era entregue ao "Bucheiro". Sempre um aluno do 5º ano que a passava, em uma cerimônia, a um sucessor que estava terminando o quarto ano. O "mandato" deste era por um ano.
O grande símbolo da Bucha, no entanto, é o sepulcro onde corpo de Julio se encontra, em um dos pátios da Faculdade. Pequeno pátio com um túmulo que se ergue na forma de um obelisco cercado de um gradil.
Não fosse a Faculdade a acolhê-lo e os estudantes a patrocinarem a construção de túmulo, ou o corpo de Júlio Frank ficaria insepulto. A Igreja católica negou-lhe sepultamento em seus templos, pois ele era protestante.
Nascido na Saxônia embarcou como clandestino rumo ao Brasil. Descoberto, ficou preso por algum tempo na Fortaleza do Lage, no Rio de Janeiro. Uma vez liberdade, veio para São Paulo, especificamente para Sorocaba, onde se encontrou com alguns patrícios e trabalhou em uma Fundição.
Em São Paulo, foi recomendado por um sorocabano Rafael Tobias de Aguiar, político de grande influência que o ajudou a lecionar no Curso Anexo da Faculdade de Direito. O político que veio a chefiar a Revolução de 1842, reconheceu, de pronto, as qualidades intelectuais do jovem, que conhecia história, geografia, geometria e várias línguas.
Júlio logo conquistou a simpatia e a admiração dos estudantes, não só do curso anexo como da própria Faculdade de Direito. Um de seus mais próximos discípulos foram Antonio Joaquim Ribas, futuro conselheiro Ribas e um dos mais notáveis lentes da Academia.
Uma curiosidade digna de nota, se refere à um sepultamento e a um nascimento.
Júlio Frank está em repouso na Faculdade. Mas, outra celebridade teria ali nascido.
Álvares de Azevedo, segundo a lenda, teria sido dado à luz dentro do velho Convento. Sua mãe, desprovida de amparo e de cuidados fora acolhida pelas Arcadas, lá levada por alunos caridosos.
O sepultamento é fato real. Já o nascimento tem todas as características de uma lenda. Não se esqueça, no entanto, que o talento poético de Álvares de Azevedo praticamente nasceu e floresceu dentro da Faculdade de Direito.
Ao que parece bucheiros e detentores da chave foram, dentre outros Américo Brasileiro, Francisco Glicério, Cesar Lacerda Vergueiro, Afonso Pena dentre outros.
Ledo engano achar-se que a Bucha congregava apenas estudantes que auxiliavam e outros que eram ajudados. Não. Tornou-se um centro de estudos, discussões e disseminação de ideias libertárias, que impregnando cada um de seus membros, possibilitando a estes difundi-las em seus círculos de relacionamento, durante e após o curso.
Ao lado da Bucha a Maçonaria também desempenhou o protagonismo fundamental na formação de gerações comprometidas com a liberdade e com a dignidade do homem.
Ambas representavam características semelhantes: sociedades secretas, filantrópicas, defesa da liberdade, democracia, humanismo, igualdade. Dentre outras pontes comuns.
Diversamente da Bucha a Maçonaria não surgiu no Brasil, na Faculdade de Direito da São Paulo. Ela é universal e antiquíssima. Não existe um extenso registro sobre a Maçonaria no Largo de São Francisco. Pouco se sabem que era maçom na Faculdade.
Mas, que houve pedreiros famosos lá formados os houve. Os maçons eram chamados pedreiros, porque os primeiros seriam operários que construíram as igrejas e catedrais na Idade Média.
No Brasil a Maçonaria teve uma influencia relativa. A não ser no período do Império. A primeira loja maçônica surgiu no fim do século XIX, em Pernambuco.
Sua atuação marcante se deu na época da Independência e da Proclamação da Republica. Durante o 2º Império, a chamada a Questão Religiosa envolveu diretamente os maçons, a Igreja Católica e o Governo Imperial.
Uma parte radical da Igreja, denominada ultramontanismo, representada no Brasil pelos bispos Dom Vidal e Dom Macedo Costa, proibiram os maçons de frequentar as cerimônias religiosas e interditaram as irmandades nas quais houvesse maçons. O governo, em face do paradoxo então existente, determinou o levantamento das interdições. Os bispos não obedeceram e acabaram sendo presos.
A questão religiosa provocou efeitos importantes na historia do Brasil. Dentre elas a separação entre a Igreja e o Estado.