Marizalhas

Repúblicas, rapinagens e outras estudantadas

Repúblicas, rapinagens e outras estudantadas.

3/8/2018

Abrigada a Faculdade em um Convento, seria necessário acolher os estudantes que vinham para São Paulo, do interior e de outros Estados. Após cinco anos de sua instalação, em 1832, formaram-se trinta e cinco alunos que compuseram, assim, a primeira turma de bacharéis da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Após 1828, a cada ano um número crescente de jovens era admitido na Academia. Durante os primeiros vinte e cinco anos de existência, formaram-se seiscentos e quinze estudantes.

Em face da precária situação financeira da maioria dos estudantes, bem como diante do diminuto número de casas para alugar, eles passaram a se agrupar, para juntos ocuparem uma mesma casa. Daí surgiram as famosas repúblicas. Elas se situavam em determinados pontos da cidade. Liberdade; rua dos Estudantes; rua da Glória; da Assembleia; Largo da Sé; rua da Freira, atual Senador Feijó ; rua Santa Tereza; Conselheiro Furtado; São Joaquim, entre outros locais.

Alguns estudantes moravam em chácaras alugadas, e outros poucos habitavam celas dos Conventos. Seis passaram a morar no Convento de São Francisco. Nos de São Bento e do Carmo estudantes pobres eram acolhidos pelos frades que lhes davam não só pousada como alimentação. Alguns deles vieram a se destacar na política e no Direito. Um estudante negro, Camilo Augusto Maria do Brito, tornou-se presidente do Estado de Goiás; Sizenando Nabuco, irmão de Joaquim Nabuco e Júlio Augusto de Castro, alcunhado de "Bocage Acadêmico", pois suas poesias continham as irreverências e ousadias do poeta português.

As repúblicas possuíam um mobiliário muito simples, mal conservado e as suas instalações eram precárias e desconfortáveis. As portas estavam enferrujadas, as vidraças, as mesas e as cadeiras quebradas, rachaduras nas paredes, dentre outros defeitos estavam presentes em quase todas elas. Como exceção destacavam-se a Pensão da Viúva Reis e uma república situada no Largo da Glória, na qual morou o poeta Alvares de Azevedo. O local denominava-se Chácara dos Ingleses. Em frente havia o Cemitério dos Aflitos.

Os serviços das mesas de refeições das Repúblicas, embora as instalações fossem precárias, eram refinados. Os melhores cafés e restaurantes da cidade colaboravam compulsoriamente para o aprimoramento do bom gosto e dos hábitos dos estudantes, que por meio de "expedições de rapinagem" supriam as suas carências domésticas.

Ficaram famosos os piqueniques organizados pelos acadêmicos do Largo. A origem dos comestíveis e das bebidas, servidos em abundância era o Mercado Municipal que ficava às margens do Tamanduateí. Os estudantes encostavam um barco, naturalmente pertencente a terceiros, e por uma rampa que dava acesso a uma porta lateral, transformavam o Mercado em patrocinador obrigatório dos alegres encontros estudantis.

Não se pense que a operação era simples. Exigia, sobretudo audácia e coragem. No entanto, a causa era nobre e justificava os riscos. Afinal estavam praticando um furto famélico.

As rapinagens não se limitavam aos comestíveis. Não, os estudantes não eram seletivos. As incursões desapropriatórias eram muito bem planejadas e variavam de objeto.

A botica "Veado de Ouro", situada na rua de São Bento, foi vítima dos estudantes que retiraram da porta da loja um veado de ouro, que era seu símbolo. O seu proprietário colocou um anúncio pedindo a devolução do objeto, comprometendo-se a manter sigilo sobre o autor e a recompensá-lo em dinheiro. O veado foi devolvido.

Os acadêmicos em matéria de rapinagem não respeitavam sequer os locais sacros e a própria Faculdade.

Com efeito, o campanário do Convento de São Francisco foi alvo da visita dos jovens que surrupiaram o badalo do sino. As razões do sacrílego furto não foram desvendadas.

O furto obrigou que novo badalo fosse instalado no Convento e a adoção de providências para imprimir segurança ao local, incluindo a própria Faculdade, pois várias de suas vidraças haviam sido quebradas.

De grande relevo na vida dos estudantes que moravam nas repúblicas, eram as cozinheiras e os escravos. Estes, em regra, eram alforriados, após a formatura de seus senhores. Interessante que tal como ocorria entre os estudantes, os escravos estavam divididos entre calouros e veteranos, dependendo da condição de seus senhores, sendo que aqueles deviam obediência a estes.

Os estudantes da nova Academia, desde o início de sua instalação, deram um novo vigor ao pequeno burgo, que viu a sua pasmaceira dar lugar a uma agitação até então desconhecida, representada pelas serenatas, pelas manifestações de oratória, pelo trote, pelos saraus, enfim os estudantes por onde passavam deixavam a sua marca.

Eles não ficavam confinados nas imediações da Faculdade ou de suas moradias. Saíam em longos passeios à pé, que poderiam atingir a Penha ou Santo Amaro. A cavalo percorriam toda a cidade, especialmente nos locais onde houvesse chácaras com pomares, cujas frutas eram por eles "colhidas".

Uma dessas chácaras se localizava na Bela Vista, e para lá os estudantes se dirigiam pela manhã, após intensa atividade etílica na noite anterior, com o objetivo de participarem de um concurso denominado "Bezerril" . Sagrava-se campeão aquele estudante que bebesse a maior quantidade de leite, que com certeza fora também vencedor da competição da noite, apenas tendo havido a substituição do líquido ingerido.

As andanças dos rapazes pela cidade, a par de alegrá-la, criava nos conservadores habitantes uma certa sensação de insegurança e mesmo de medo. Realmente, por vezes, assustavam os pacatos moradores da pacata São Paulo. Algumas das ruas, que abrigavam repúblicas, tornavam-se intransitáveis após certa hora da noite. Nas ruas da Palha, atual Sete de Abril, e na rua dos Bambus, hoje um trecho da Av. Rio Branco, por exemplo, os estudantes reservavam surpresas aos poucos e corajosos transeuntes, por vezes inocentes brincadeiras, mas, por vezes, não.

Na rua da Palha, eles se transformavam em Quixotes ou em Cruzados da Idade Média. Montados em vassouras, investiam contra os moinhos de vento ou contra os mouros, representados por algum incauto, que por lá passasse. Observe-se que não trajavam pesadas roupas ou armaduras. Apresentavam-se apenas vestidos com um camisolão de dormir, fato que horrorizava os habitantes do local.

Um estudante chamado Caetano Pinto, saia às ruas portando uma grande vara, para se equilibrar nas pontes e pinguelas então existentes, ou subia em um carro de boi e desfilava pelas vias mais movimentadas, erguendo um estandarte.

Um outro acadêmico saia à noite vestido de mulher, com uma palmatória nas mãos que era utilizada nos transeuntes notívagos. O estudante se dizia representante da ordem pública, e estava à caça de desordeiros e mesmo não o sendo, o transeunte era obrigado a retornar à sua casa.

Os rios Tietê e Tamanduateí eram muito frequentados pelos estudantes que praticavam natação e remo. As moças, sempre acompanhadas por alguém, também frequentavam as margens desses rios, para assistir as competições e para "tirar linha" com algum jovem acadêmico.

Serenatas e cantorias noite adentro eram quase diárias. Abandonavam as mesas dos bares e dos bilhares para postar-se em baixo das janelas das eleitas e declamar ou cantar a sua paixão. O apaixonado se fazia acompanhar de colegas, incumbidos dos instrumentos e dos cantos. Por vezes, quando a escolhida surgia na janela os amigos serviam de ponto, para dar "cola" ao amigo.

Tanto as canções, como as poesias, culminando com a declaração de amor, deveriam ser executadas com rapidez, pois inevitavelmente as serenatas terminavam com o pai da "Julieta" substituindo-a nas janelas para arremessar toda a água de um balde, quando não o balde junto.

Em regra eram quatro os instrumentos tocados : flauta; cavaquinho violão e clarineta. Por vezes, surgia o violão e a rabeca.

Os mesmos grupos de seresteiros davam audições nas Repúblicas e nas Praças Públicas, especialmente no Largo da Igreja de São Gonçalo, localizada na atual Praça João Mendes, aonde as famílias passeavam ao cair das tardes dos fins de semana.

Falando de música, deve ser realçada a sua importância na vida da Academia de Direito, quer pelas atividades musicais ali desenvolvidas no curso de sua história, quer em razão de uma instituição genuinamente franciscana, a "Caravana Artística", quer porque a música retratou o espírito galhofeiro, boêmio, espirituoso dos estudantes, por meio das trovas acadêmicas .

Note-se que Carlos Gomes, em 1860, esteve em São Paulo, hospedou-se- em uma república, na rua São José, hoje Líbero Badaró, e frequentou a Faculdade com assiduidade.

Nesta época, o mestre campineiro, compôs o "Hino Acadêmico". Foi em São Paulo que compôs uma canção popular até hoje divulgada e cantada "Quem Sabe". Consta ter ele dedicado à uma sua amada quando se separaram.

Já nos primórdios da Faculdade, os estudantes passaram a compor modinhas, na verdade as famosas trovas acadêmicas, que se perpetuaram e até os nossos dias são entoadas em qualquer lugar onde se encontrem estudantes.

Em meados do século XIX, era comum que em suas andanças notívagas, os acadêmicos do Largo cantassem:

"Andamos rindo às estrelas – Boêmios endiabrados – Apedrejando as janelas – dos burgueses sossegados".

Esta trova, nos remete a um fato hilário que provocou persistentes gozações por parte da roda de Olavo Bilac, grande poeta e excepcional boêmio. Estava ele na redação do jornal Diário Mercantil, quando recebeu a visita de um homem que reconheceu ser o marido de uma senhora, que por ele se apaixonara e o assediava publicamente. Certo de que a visita do marido injuriado não seria amigável, Olavo preparou-se para enfrentar uma agressão ou algo mais grave. No entanto, o marido de forma educada e respeitosa, dirigiu-se ao poeta e pediu-lhe desculpas em nome da mulher, pois esta sofria das faculdades mentais, era doida e acabara de ser internada em um hospício. O alívio veio seguido da decepção, pois, verificou que não era alvo de uma paixão avassaladora.

Não se deve pensar que a conduta dos acadêmicos estava exclusivamente voltada para troças e brincadeiras ou para serenatas e galanterias. Muitas eram as ocasiões em que se dedicavam aos cuidados com a alma e com o espírito, demonstrando o seu fervor e a sua devoção religiosos. Compareciam a todas as festividades da Igreja realizadas na cidade e em seus arredores. Procissões, quermesses, até missas e rezas contavam com a presença, ai constrita e bem comportada, dos futuros bacharéis.

No entanto, uma observação se faz necessária: os estudantes não compareciam às festas e às cerimonias religiosas exclusivamente por razões ligadas à fé que dedicavam aos santos de sua devoção, aos padroeiros de suas cidades ou comunidades. Razões mais mundanas os moviam. As comidas, as bebidas e especialmente as sinhazinhas paulistanas, que se faziam notar e que notavam os garbosos acadêmicos nestas solenidades religiosas, representavam um importante fator de atração para os estudantes.

Uma atividade que desagradava sobremodo os sisudos e conservadores paulistanos era a rapinagem praticada pelos jovens acadêmicos com grande frequência e de forma diversificada, que naqueles tempos não se restringiram ao badalo do sino da Faculdade ou à uma cruz que existia na rua da Cruz Preta, atual Quintino Bocaiuva.

Além das frutas e das verduras confiscadas dos pomares das hortas, os galinheiros eram assiduamente frequentados, pois galináceos e perus eram o alvo dessas rapinagens, que na verdade ficavam longe do alcance da lei penal, pois, como já foi dito, enquadravam-se na categoria de furto famélico.

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Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.