Marizalhas

Sinceridade no júri

Umo caso de dois homicídios e a grande sinceridade do réu no dia do júri.

27/8/2012

O caso era de dois homicídios, um consumado e um tentado, que teriam sido praticados por um marido traído. A morte do parceiro e a tentativa contra a parceira levaram ao banco dos réus um pacato operário de cinquenta anos de idade.

Fruto da cultura, à época ainda arraigada, de que a conduta reprovável de um cônjuge atinge a honra do outro, bem como que a honra manchada só é lavada à bala, o homem resolveu obedecer aos padrões imperantes.

A sua decisão não foi repentina. Não, ela foi refletida, sedimentada, criou raízes e gerou a sua inabalável opção.

Desde o dia de sua primeira desconfiança, fruto de uma comprometedora e induvidosa marca no pescoço e do tardio horário de chegada em casa, as suas dúvidas foram sendo dissipadas e a certeza foi se cristalizando em seu espírito.

Homem de extraordinária simplicidade, casado há vinte e cinco anos, não suportou conviver com a conduta da mulher, para ele denotadora de imperdoável infidelidade, que atingiu os oito filhos do casal.
Enquanto ele se esfalfava para sustentar a enorme prole, imaginando que a companheira estivesse em casa cumprindo o papel reservado à mulher, que no seu entender seria o relacionado às atividades domésticas, estava ela se dando ao desfrute com outro, ou com outros homens.

O primeiro golpe que recebeu da mulher ocorreu em Osasco. Estava ele no interior de um ônibus e viu-a abraçada com alguém. Desceu do coletivo, mas não pode ver quem era o seu rival. O atrevido parceiro de sua mulher fugiu.

Disse haver perdoado a companheira, em nome dos oito filhos, para manter a unidade familiar.

Algum tempo depois, consentiu que ela trabalhasse fora, segundo ela para reforçar o orçamento doméstico. As constantes "horas extras" utilizadas para justificar os não raros atrasos na chegada em casa, somados ao episódio de Osasco provocaram-lhe ciúmes e desconfianças.

Em determinado dia, observou que a esposa portava outro sinal significativo no pescoço. Agora a marca era de um rubro marcante. Com certeza não era a anterior, pelo decurso do tempo. Portanto, havia prova de recente infidelidade.

Não tendo sido por ele provocada, porque o casal não se aproximava havia muito tempo, sua honra fora tingida de vermelho, desta feita por um novo vampiro.
Na manhã seguinte à descoberta, ele seguiu a adúltera. Entrou no mesmo ônibus e desceu pontos depois, perto da av. Brigadeiro Luiz Antonio, local distante do trabalho da mulher. Esse fato causou-lhe inquietação e aumentou a sua desconfiança.

Assim que saltou do ônibus viu-a entrar em uma perua Kombi que estava parada perto do ponto.

Houve uma pequena demora até que, ao ver ambos se beijando, pensou ser aquele o momento propício para recuperar a sua dignidade e a sua honra, o que só poderia se dar à bala. Claro que o ciúme se fez presente em sua decisão.

Aproximou-se da Kombi aos gritos. Assustado de início, o motorista cúmplice da infidelidade se recompôs e procurou tirar do porta-luvas uma arma. Antes, no entanto, que o fizesse, foi atingido duas ou três vezes pelos disparos desferidos pela janela do carro.

A mulher teve como aliada a arma do marido, que negou fogo quando acionada contra ela.

Aceitei defender o marido traído, pois ele me inspirou pena. Pena do homem amargurado pela infidelidade da esposa, mãe de seus filhos, a quem soubera perdoar uma primeira vez, sem ter, entretanto, resistido ao segundo deslize.

Durante o curso da instrução, procurei convencê-lo de que seu ato fora impensado, fruto do choque provocado pela visão da mulher aos beijos com outro dentro de um carro.

Para mostrar que agira em legítima defesa, quer física, quer da honra ou na pior das hipóteses, sob os efeitos de violenta emoção, eu procurava mostrar que ele não agira premeditadamente, afastando de seu espírito qualquer ideia nesse sentido.

Pois bem, para que vingasse tal tese, necessário seria que ele afirmasse um fato relevante: por morar em lugar ermo e ir cedo para o trabalho, todos os dias saia armado de casa, sendo que possuía porte.
Não houve nenhuma discordância de sua parte. Pareceu-me ter ele apreendido a versão, que, aliás, não fugia da realidade.

Treinei-o dias seguidos. Quando lhe perguntava, como se fosse juiz, se ele andava armado, respondia-me, de pronto, que sim, pois possuía licença e residia longe e saia cedo de casa para trabalhar.

No dia do júri achei-o tranquilo e pronto para enfrentar o julgamento. Com certeza não falharia. A versão seria bem exposta.

Pois bem, vencidas as fases iniciais da sessão, teve início o seu interrogatório. Primeira pergunta do presidente do primeiro Tribunal do Júri: O sr. sempre andou armado? Resposta veemente: Não Excelência, eu juro por Deus que jamais coloquei um revólver na cinta. Somente naquele dia.

Ah! exclamou o magistrado olhando-me com ar de censura, como se eu não tivesse orientado corretamente o cliente.

A sorte é que os jurados foram sensíveis ao seu drama e reconheceram a legítima defesa, com excesso culposo.

Graças, talvez, à sua sinceridade o Otelo estava salvo...

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Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.