Esta é a segunda vez que escrevo sobre Waldir Troncoso Peres. A primeira foi a convite da Associação dos Advogados de São Paulo, logo após o seu falecimento. Certos fatos narrados são repetidos. Algumas observações sobre sua personalidade e caráter também, no entanto haverá nesse escrito considerações não feitas anteriormente.
Embora falecido há aproximadamente três anos, sua presença é permanente. Fala-se dele, passagens de sua rica vida são recordadas, seus históricos júris são até hoje comentados, enfim a sua lembrança assalta o espírito de todos aqueles que, como eu, nutrem uma imorredoura estima pela sua estupenda figura de homem e de advogado. Desta forma, inesgotável é o rol de registros pertinentes ao seu modo de ser, às suas ideias, às suas manifestações, ao seu peculiar e encantador gestual, enfim à sua existência.
Nascido em uma fazenda do interior de São Paulo, na cidade de Vargem Grande, manteve até o final de seus dias uma comovente simplicidade, a simplicidade do homem ligado à terra e criado sem limites espaciais, sem os freios da civilização urbana. Deixou livremente aflorar, e manteve intacto, autêntico, o seu eu vigoroso, real, desprovido de adulterações, reservas, maquiagens. Jamais exerceu papéis, pois sempre foi personagem de si mesmo. Soube manter-se livre, podendo assim, ser fiel à sua essência.
Com 16 anos veio para São Paulo. Morou em pensão. Ingressou no Largo de São Francisco. Foi orador do Centro Acadêmico Onze de Agosto, o primeiro, na histórica instituição que, ao ser eleito, não cursava o quinto ano. Combateu a ditadura Vargas, foi preso. Perdeu a liberdade lutando por ela. Meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, seu colega da turma de 1946, igualmente amargou o cárcere pela mesma razão.
Trabalhou no escritório de Luiz Carlos Pujol e Emílio Carlos. Posteriormente, montou seu próprio escritório com Nicolau Chacur, posteriormente Wadi Helou passou a integrá-lo.
Cedo, Waldir teve despertado em si o interesse pela advocacia criminal. Não há nenhuma dificuldade em buscar a razão de sua opção. A liberdade, como desiderato maior da advocacia criminal e o homem como matéria prima do nosso trabalho, o conduziram para o "crime" na forma de um chamamento coerente com as suas aspirações existências: a preocupação pelo homem e o apreço pela liberdade.
Waldir, tal como os advogados criminais de sua geração, sempre encarou a advocacia como verdadeiro sacerdócio, mercê da necessidade de compreensão da alma humana e do alto grau de abnegação e de renúncia impostos ao advogado.
Igualmente, atendeu à perfeição duas outras características da advocacia penal: ela é uma ciência, pela gama de conhecimentos, de pesquisa e de especulação que exige. Ademais, é arte em razão do acentuado grau de criatividade e de beleza estética – palavra escrita ou falada – que a envolve.
Ninguém rigorosamente ninguém, sem demérito para os extraordinários oradores do fórum, ou fora dele, que conheci e que conheço, superaram o Espanhol como orador. Foi um artista da palavra e seu cultor, seu reverente cultor. Como alguém já teria dito, nunca se soube se ele pensava primeiro e falava depois, ou ao contrário se sua verve antecedia os seus pensamentos. Era um turbilhão, uma cascata, um dique que se rompia, com inteligência, propriedade e coerência.
Dizer que Waldir foi um cientista, no sentido do pesquisador, é distorcer a realidade. Não foi um advogado dedicado a grandes especulações intelectuais em torno do Direito. Conhecia com solidez todos os institutos do Direito Penal relacionados ao direito de defesa. Com grande proficiência adaptava as dirimentes, excludentes, causas de diminuição de pena, inexigibilidade de conduta diversa, e outros institutos, aos fatos e circunstâncias que compunham a conduta delituosa de seu defendido.
No entanto, um setor no qual era imbatível, e ai, pode-se dizer ter sido um cientista no sentido amplo do termo, é o referente ao homem e à sua alma.
Possuía uma insuperável necessidade, verdadeiramente existencial, que chegava às raias da angústia, em desvendar, dissecar, esmiuçar, a mente e a alma, o pensar e o sentir do homem. Toda a defesa por si produzida, escrita ou oral, no júri ou fora dele, sempre se fez acompanhar por uma percuciente análise comportamental do acusado e dos demais protagonistas do processo, bem como dos motivos que o levaram ao crime.
O homem sempre atraiu as atenções prioritárias de Waldir Troncoso Peres, como advogado e como cidadão. Tornou-se um invulgar advogado exatamente porque sempre soube ser compreensivo e mais do que isso complacente com as mazelas humanas. Passou a entender o homem com suas grandezas e misérias. Longe das posições maniqueístas, as suas opiniões sobre o homem e sobre o seu comportamento e sobre a vida em geral, sempre levaram em conta o verso e o reverso da moeda. Jamais as suas apreciações isolaram o bem do mal, o certo do errado, o feio do belo, o justo do injusto. Os extremos sempre se conciliaram nos seus juízos de valor.
Porém, nunca transigiu com um valor que constituiu a razão maior de sua existência: a liberdade. Em matéria de liberdade jamais admitiu o outro lado, a existência do reverso. Jamais aceitou meio termo ou conciliação com qualquer circunstância que a ela se opusesse. Perseguiu a liberdade como valor máximo do homem.
Waldir, em certa ocasião, assumiu a defesa de policias acusados de pertencerem ao chamado "esquadrão da morte". Mais uma vez, dentre as inúmeras em sua vida profissional, foi o porta-voz dos direitos e das garantias constitucionais de acusados colocados à execração pública. Mais uma vez encarnou a figura do advogado pleno. Arrostou a histórica incompreensão que acompanha a advocacia criminal.
Com efeito, especialmente nos casos de ampla divulgação e de grande repercussão o advogado é confundido com o acusado. É visto como apologista do crime cometido e não como defensor dos direitos do acusado. Há uma resistência, verdadeira irresignação, quanto ao exercício da defesa. Querem condenação sem processo e punição sem julgamento. Querem vingança.
Em um ano no qual novas eleições para o Conselho Seccional da Ordem terão lugar é oportuno repetir uma passagem que já mencionei no escrito para a Revista da AASP.
Procurado pelos componentes do Grupo Tempos Novos, criado por mim em 1986, para ser candidato à presidência, nas eleições que se travariam em 1990, Waldir assentiu e o fez com grande entusiasmo. Pareceu-lhe uma excepcional oportunidade para divulgar as suas ideias e propagar os seus ideais, como advogado e como cidadão prestante. Entendeu mesmo ser uma missão irrecusável.
Por outro lado, a sua disposição de concorrer e a sua eventual vitória teriam um inestimável valor simbólico e exemplar, como excepcional fator de valorização profissional, da qual a advocacia, já em crise, muito carecia.
Saliente-se que nós procuramos Waldir, quase que implorando, para que aceitasse a candidatura, sem que ele a procurasse. Já estava distante da política de classe. Recebeu o convite como uma honraria, qual seja a de poder servir a advocacia.
E, o procuramos, não primordialmente porque poderia ganhar as eleições e com ele o nosso grupo. Não, tivemos como preocupação primeira escolher um nome que pudesse representar o nosso ideário, as nossas propostas de valorização profissional a nossa luta enfim pelo engrandecimento da advocacia, que vínhamos empreendendo nas duas gestões anteriores.
Não queríamos um nome qualquer, uma chapa qualquer e nem desejamos celebrar acordos com quaisquer grupos, por mais viáveis eleitoralmente que fossem. Vencer seria e é importante. No entanto, ser coerente leal e fiel com princípios e com ideais supera a vitória, que a qualquer preço é aviltante pois desprovida de coerência e de honestidade.
E Waldir, por sua vez, não tinha em mente vencer as eleições para ostentar o título de presidente, pura e simplesmente. Queria servir, contribuir para o aprimoramento das instituições, ajudar a restituir ao advogado o respeito social, o acatamento e o reconhecimento de seu valor e de sua imprescindibilidade. Waldir acreditava, tal como todos nós, na advocacia como instrumento eficaz para a construção de um Brasil melhor. Para ele o relevante seria a Ordem e não o cargo.
É, naqueles tempos, se pensava dessa forma. Espero que volte a ser assim. Espero que voltemos a ver a Ordem como instituição plenamente habilitada a ser a porta-voz dos anseios e das aspirações da advocacia, pois o cumprimento desse objetivo é a única razão que justifica as candidaturas para os seus postos de comando.
Com toda a certeza os rumos da OAB/SP e os da própria advocacia teriam sido alterados e possivelmente não estaríamos assistindo à crise que tanto nos amargura, caso Waldir não houvesse desistido de ser candidato. Justificativas estritamente pessoais levaram-no a desistir. Todos lamentaram, mas entenderam as suas superiores razões.
Seus motivos foram expostos em um comovente discurso proferido na Câmara Municipal de São Paulo, perante o grupo, advogados do interior e da capital, reunidos a seu pedido. Nessa oportunidade Waldir fez uma extraordinária e belíssima profissão de fé na advocacia. Expôs um dilema que o assaltou certa ocasião. O dilema da opção entre legítimos interesses materiais e o dever do advogado de exercer o direto de defesa, independente de remuneração.
Em um mesmo caso, ele foi procurado simultaneamente para ser assistente da acusação, remunerado com sedutores honorários e para defender o réu gratuitamente. Optou pela defesa. Segundo disse, preferiu "a orfandade econômica à orfandade moral que seria negar a minha vocação, e a forma de ser, o meu contorno psicológico, o meu modelo espiritual, a minha interioridade". Completou afirmando "Sempre corri atrás da vida, como fundamento e essência, e não atrás de negócios".
Nos dias de hoje, quando se prioriza o ganho, o ter, o bem material a sua lição é preciosa, embora possa parecer anacrônica, utópica, mera ficção. É fundamental, no entanto, que ela seja divulgada e repetida à exaustão. Talvez possa ela sensibilizar aqueles que se olvidam com facilidade dos valores intrínsecos à advocacia, e à própria vida, como a verdade, a amizade, a solidariedade e a lealdade.
Deve-se, pois, ter presente que, tal como ensinava Waldir, o valor superior da existência é a própria vida em sua abrangência e inteireza e não apenas um único dos seus aspectos que é o negocial.
Agora que Waldir se foi, deveremos reverenciar a sua memória. No entanto, não basta lembrá-lo, escrever e falar sobre ele. É preciso perseguir e seguir os seus exemplos. Divulgar os seus pensamentos. Adotar os seus posicionamentos na profissão e na vida, ser fiel aos seus ideais.