Marizalhas

Os engraxates

26/9/2011

Durante quatro anos seguidos eu frequentei Águas de Lindóia, balneário localizado no interior de São Paulo, dotado de águas milagrosas, pelo menos era o que se dizia. Para o meu problema de alergia de pele elas eram salvadoras. Eu lá ficava durante vinte e um dias, que era o prazo da temporada.

Acordava às seis horas para tomar os banhos medicinais e de meia em meia hora, ou menos, não me lembro, tomava as águas em quantidades dosadas.

As manhãs eram desagradáveis. Começavam cedo e eram quase integralmente gastas com banhos e ingestão de água. Havia ocasiões que eu ainda conseguia, ao voltar para o hotel, que se chamava do Lago, andar a cavalo.

A cidade possuía uma única rua, não asfaltada; um único cinema, chamado Guarany; uma única farmácia, na qual eu comprava sabonetes e cremes medicinais, todos fabricados pelo Dr. Tozzi, dermatologista famoso, percussor dos tratamentos. Eram inúmeros e imponentes os hotéis, destacando-se, à época, o Tamoio e o Glória, esse o mais elegante e frequentado principalmente pela colônia libanesa. O cinema também era único. Cine Guarany – havia um hotel, chamado também Guarany e a farmácia, idem Guarany. Não sei a razão, mas eu me lembro de um filme que ficou gravado em minha memória, ou melhor, apenas o nome do filme, pois nem sei se o assisti. Chamava-se "A Condessa Descalça" salvo engano com a atriz Ava Gardner.

Mas, na verdade eu não quero falar de Lindóia, mas dos engraxates de Lindóia, que podem representar todos os engraxates espalhados pelo Brasil. E mais, encarnam todos os prestadores de serviços, que exercem funções imprescindíveis para o nosso cotidiano, sem os quais nos colocamos por vezes em desespero, tal a necessidade que temos dos seus trabalhos. São os eletricistas, os encanadores, os pintores, os marceneiros, no meu tempo de criança os limpadores de fossa, os mecânicos, os sapateiros e tantos outros. É bem verdade, que muitos deles não mais trabalhavam individualmente, pois estão empregados em firmas prestadoras desses mesmos serviços. No entanto, ainda os há laborando em suas pequenas oficinas e nos atendendo em casa ou, como os engraxates, nos servindo nas ruas, quando não nas barbearias ou nos aeroportos. Uma parcela da nossa sociedade se refere a eles como serviçais.

Os engraxates de Lindóia percorriam o balneário e os terraços dos hotéis da cidade, inclusive o terraço do Hotel do Lago, onde eu me hospedava. Eu me impressionava com a habilidade manual desses artistas do brilho. Escovas, panos, latas de graxa e vidros de tinta passavam por suas mãos com uma rapidez e agilidade incríveis.

Os sapatos ficavam reluzentes, especialmente os de verniz. Estes se transformavam em verdadeiro espelho. E, com que orgulho os engraxates, eram pequenos engraxates, ao final da engraxada, olhavam para a sua obra de arte, os sapatos, e para o freguês, aguardando um elogio. Os engraxates tinham suas manias, os seus códigos e normas, que eram seguidos a risca por todos eles. Quando era para o freguês, ou melhor, o cliente, pois assim eles os chamavam, trocar de pé batiam com a escova do lado da caixa; quando o pé não ficava muito firme, para acertá-lo davam um ligeiro empurrão na ponta ou no calcanhar; se o cliente fosse antigo e conhecido por dar boas gorjetas ao invés de uma mão de graxa, eram aplicadas duas ou três; ao terminar a engraxada nada era dito, eles se limitavam a retirar os protetores das meias.

Gostava de vê-los em ação. Eram ótimos no que faziam e sentiam orgulho em dar lustre nos sapatos alheios. Consideravam tal tarefa de primordial importância para a composição estética de um homem. E, realmente, sapatos bem engraxados denotam asseio pessoal, bom gosto e elegância no trajar. Eram orgulhosos e briosos, possuíam autoestima. Enfim, estavam felizes consigo e não se sentiam inferiorizados pelo que faziam e por estarem em contato permanente com pessoas de outra classe social, especialmente com jovens, muitos deles arrogantes e sem educação.

Se de um lado eu sentia admiração pelos engraxates, a atitude de alguns, e não eram poucos, de seus clientes me causava revolta e indignação. Não eram os jovens apenas, mas também seus pais, que demonstravam pelas atitudes rudes e por vezes agressivas o desprezo que sentiam por aqueles que estavam numa atitude que eles imaginavam de subserviência. A colocação física de ambos, um em plano elevado sentado, e o outro abaixado aos seus pés, já dava essa impressão. Depois, um trabalhava e o outro aguardava para pagar. E, o fazia com pouco caso, como se fosse uma esmola e não a remuneração por um trabalho. Não houvesse engraxates para terem os sapatos limpos teriam que sujar as mãos com graxa. Algo inadmissível.

Nenhum dedo de prosa; nem bom dia ou até logo; inimaginável um elogio, mutismo absoluto, exatamente para configurar a distância de classes. O pouco caso, a soberba e a empáfia de muitos dos clientes chamavam a minha atenção e provocavam uma revolta silenciosa, pois eu nada dizia. Ou melhor, dizia sim aos meninos engraxates. Indagava se eles não se sentiam mal, até humilhados em face do constante menosprezo do qual eram vítimas. Respondiam que não, pois estavam habituados. Ademais, o seu ganha pão, e para muitos o sustento de toda a família, dependia do que lhes era pago pelas engraxadas.

A situação dos engraxates de Lindóia retrata aquela que ainda persiste em nosso país e em outros cantos do mundo em vários níveis e circunstâncias. Um fosso social, aberto e mantido por uma pseudo elite que insiste em se manter isolada do contexto social existente, e mais, que apregoa e age como se houvesse uma ridícula superioridade entre os vários segmentos da sociedade. Esta elite gostaria que houvesse um verdadeiro apartheid social.

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Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.