Não faz muito tempo realizei uma experiência invulgar: fiz compras. Comprar para mim é façanha rara e quando desempenhada é mal desempenhada. Adquirir algo para outrem é então um sacrifício monumental, embora presentear me dê grande prazer. Não sei comprar, mas gosto de ter para poder dar.
Sempre foi assim. Minhas necessidades pessoais de compra são e sempre foram satisfeitas pela minha mulher. Antes de casar-me, era minha mãe quem se incumbia de atender ao filho tímido para tal mister. Nas poucas compras que fiz devo ter sido presa fácil para vendedores pouco escrupulosos. Ao entrar em uma loja já tinha em mente dela sair, e para ir embora eu comprava a primeira mercadoria que me era oferecida.
No entanto, a experiência a que me referi pareceu-me satisfatória e com certeza foi muito agradável. Não fiquei intimidado, nem apressado para sair das lojas e não tive a impressão de estar sendo enganado pelos vendedores ou que eles estivessem ávidos para vender seja lá o que fosse.
Dois foram os fatores de tão marcante mudança no meu comportamento. Primeiro deles: estava eu fazendo compras em um shopping com a minha neta Maria Fernanda, então com nove anos. Segundo fator: as compras seriam para minha outra neta, Maria Clara, ainda por vir, ansiosamente esperada por todos e já muito amada. O grande apoio que Maria Fernanda me deu e a alegria de estar presenteando a tão esperada segunda neta constituíam os fatores que, tinham imaginava eu, transformado-me num eficiente e esperto consumidor.
Pois bem, saímos da última loja, visitáramos umas três ou quatro, e fomos à livraria Saraiva. Compras foram feitas por mim e por Maria Fernanda, as dela segundo sua exclusiva preferência quanto aos livros e cds. Ela, então, desejou tomar lanche. Feitos os pedidos, enquanto esperávamos, Maria Fernanda olhou-me entre solene e gozadora e sentenciou: "Voco (é assim mesmo) você é muito bom para fazer compras" mas, emendou, "em livraria".
Pronto, a ilusão de que me tornara hábil consumidor desvaneceu-se com a franqueza e abalizada opinião daquela menina de nove anos.
Não entendo a razão da minha inibição. Ela não é coerente com o meu comportamento normal. Na verdade, como disse, sempre tive quem comprasse por mim. Nos curtos períodos em que fazia determinadas compras, fui mal acostumado pelos comerciantes que me atendiam. Seus comércios estavam localizados nas imediações da rua Cubatão, na Vila Mariana/Paraíso.
Era a época das famosas cadernetas, uma espécie de fiado oficializado, pois nelas eram contabilizados os débitos. Verdadeiros títulos de crédito no sentido moral, que eram honrados religiosamente ao final de cada mês.
Lembro-me que nas imediações o único fornecedor de gêneros alimentícios, de limpeza e de tantas outras mercadorias, incluindo guloseimas, o único empório existente era o do sr. Nicolau. Na verdade localizado bem em frente à minha casa.
Pois bem, um dos grandes responsáveis pela minha inépcia como consumidor foi esse mesmo sr. Nicolau. Um descendente de libaneses, portador do carisma e da simpatia próprios da raça, tornou-se um grande amigo, meu e de inúmeros outros meninos do bairro que frequentavam seu empório, juntamente com os alunos do Colégio Bandeirantes. Estes na hora do lanche iam banquetear-se com os deliciosos sanduíches que ele colocava em cima do balcão, já prontos. Bastava pegar e pagar. Pegar todos pegavam, mas pagar... O sistema foi invertido, pague e pegue o sanduba, que não mais ficava exposto no balcão.
Seu Nicolau, gritávamos nós, "solta ai um mingau e uma colher de pau", ao que ele respondia esbravejando e arremessando o que tivesse nas mãos, até faca, mas sempre para não nos acertar. No seu empório o sistema também era o da caderneta.
Aos domingos, seu Nicolau abria meia porta do empório na hora do almoço para quem quisesse comprar bebidas. Naqueles tempos não se fazia estoque. Não havia dispensa pelo menos para refrigerantes, bebidas e outros "luxos". Creio que mesmo em relação aos alimentos de primeira necessidade não se comprava para o mês todo. A facilidade do empório perto, a caderneta onde eram anotadas as compras, bem como o pagamento que era feito apenas no final do mês convidavam às compras miúdas. No nosso caso, bastava atravessar a rua e lá estávamos no empório do seu Nicolau e da dona Carmen, sua esposa.
No meu caso específico, quando comecei a fumar, seu Nicolau adulterava a caderneta pois marcava a compra de balas, chocolate, sonho de valsa ou diamante negro ou refrigerantes ao invés do verdadeiro produto comprado que era um maço de cigarros. Fazia com que os preços equivalessem. No final do mês, sem de nada desconfiar (será?) minha mãe limitava-se a dizer, exibindo a caderneta: "agora eu sei porque você está engordando". Pena que cigarro não emagrece.
Está aí a explicação das minhas dificuldades como consumidor: não se compra mais com cadernetas...