Marizalhas

O anjo gordo

31/1/2011

Ao contrário do Anjo Torto de Drumond, o nosso Anjo Gordo jamais disse a alguém "vá ser gauche na vida". Sua figura física era de quem ajudava, amparava e protegia. Um gordo, no corpo e na alma.

Não tenho memória nítida da sua infância. Lembro-me, no entanto, eu tinha oito anos, que a sua vinda foi motivo de grande júbilo para todos, pois minha mãe não tivera sucesso em duas ou três gravidezes anteriores. Eu que era filho único, mimado ao extremo, perdi a majestade. Devo ter apagado da memória fatos e sensações dos seus primeiros anos de vida.

Ele era magro, muito magro, acreditem. Possuía um andador. Não parava. Andava, na verdade corria pela casa enfrentando e superando todos os obstáculos. Cadeiras, mesas, poltronas e sofás não conseguiam detê-lo. No entanto, uma mesa do centro da sala se tornou obstáculo intransponível. Possuía uma quina pontiaguda que o atingiu, ou melhor, foi atingida por ele. Um corte respeitável, acima do nariz, que pelo sangramento não permitia saber se a vista tinha sido lesada. Grande alvoroço, quase pânico. Lembro-me bem desse dia e da marca que ficou em sua testa.

Ao contrário do que ocorreu comigo, o seu reduto não era a rua Stella e nem outra nenhuma. Não possuía turma de rua. Seus amigos mais chegados, se bem me lembro, eram nossos primos Celso e Marcos Monteiro Camargo.

Notável sempre foi o seu ouvido musical. Herdou esse dom de nossa mãe. Com seis anos tocava piano de ouvido, utilizando apenas o dedão. Aliás, jamais tocou por música. Pela vida afora jamais tocou por música. Captava a melodia e de imediato a reproduzia.

Formou-se em Direito em 1976, pela Católica, tendo presidido o Centro Acadêmico 22 de agosto. A advocacia, no entanto, nunca o atraiu. Trabalhou um tempo no escritório que nosso primo Alberto Viégas Mariz de Oliveira e eu instalamos na rua Nestor Pestana, em 1978. Já nessa época estava interessado por turismo e pelo sistema penitenciário. Não saberia dizer quais as razões que o levaram a dedicar-se com tanto empenho e durante toda a vida a uma atividade que nunca esteve nas cogitações e nos projetos de jovens do nosso meio. Sabemos que a sociedade encara a cadeia como a única resposta para o crime e que dentro da cultura repressiva dominante ela exige com ardor e até fanatismo que se reprima o crime, não atacando as suas causas em caráter preventivo, mas reprimindo-o por meio de prisão, de leis mais rigorosas, de ação policial efetiva, mesmo que esta atuação só ocorra após a prática delituosa.

José Eduardo trabalhou na Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso durante dezoito anos, em uma primeira fase. Com a mudança de um dos governos, ele foi dispensado juntamente com inúmeros outros dedicados funcionários da FUNAPE. Anos depois, mercê da sensibilidade do Secretário do Sistema Penitenciário, a Fundação recebeu novo impulso e meu irmão voltou a prestar sua colaboração, tendo falecido quando integrava os seus quadros.

Essa Fundação ainda hoje desempenha funções relevantes dentro do sistema penitenciário de São Paulo. Aliás, seus objetivos são na verdade os únicos que se alcançados podem efetivamente preparar os detentos para, uma vez em liberdade, tornarem-se ou voltarem a ser elementos prestantes e terem condutas compatíveis com uma vida normal em sociedade. Os objetivos são os de dar trabalho e ensino aos presos, retirá-los da ociosidade, revelando-lhes aptidões e vocações até então desconhecidas, e com isso, despertar-lhes a autoestima.

O trabalho com os presos nos deu a dimensão da bondade de José Eduardo. Pertencente a uma família constituída nos moldes burgueses, típica da classe média brasileira, educado dentro de princípios e valores absolutamente antagônicos àqueles que encontrou no meio prisional, não se poderia imaginar tivesse ele vocação para conviver com homens agressores exatamente agressores daqueles mesmos valores.

Diria que além de sua aptidão e sensibilidade para trabalhar com presos, com grande afinco e mais do que tudo, com a crença de poder contribuir para a sua recuperação, meu irmão tinha outras "extravagâncias" não propriamente profissionais, mas ocupacionais. Durante algum tempo apitou jogos de futebol. Não era árbitro profissional. Estudou regras, uniformizou-se, possuía apito, enfim preparou-se para atuar e atuou em campos de várzea, em torneios entre faculdades, chegou até a apitar uma preliminar disputada no Estádio do Morumbi, entre equipes juvenis.

Outra sua atividade, esta já de natureza profissional, foi o turismo. Chegou a possuir uma agência. Antes mesmo de abrir a agência, fazia viagens como guia para outras empresas. Fez dezenas de viagens muitas delas para o exterior, sendo sempre muito festejados pelos seus passageiros. O interessante é que conhecia muito pouco outras línguas, o que não impedia de desempenhar bem o seu papel.

Na qualidade de guia turístico levou um grupo, do qual eu e minha mulher fizemos parte, para a União Soviética, nas Olimpíadas de 1980. Pois bem, ainda no Brasil recebeu um pedido de uma amiga, para que comprasse umas sapatilhas de balé, para uma sua filha.

Em Moscou José Eduardo solicitou ao guia local, que falava português, para escrever em um papel indicações que lhe possibilitassem encontrar o endereço da loja. O bilhete estava escrito em russo e seria exibido por meu irmão a alguém que o ajudaria. E, dito e feito. Ele mostrou-o na Praça Vermelha a dois policiais. Estes ao lerem o escrito não contiveram uma estrondosa gargalhada. Para meu irmão uma interminável gargalhada dos dois russos que o olhavam com espanto, tendo contorções de riso. E ele, sem graça, limitava-se a dar pálidos sorrisos.

Quando retornou ao hotel, após fazer a incômoda compra, soube da peça que o guia lhe pregara. Estava escrito no bilhete : "sou uma bailarina brasileira. Quero comprar sapatilhas na rua".

Note-se que à época José Eduardo pesava uns 140 quilos.

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Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.