Marizalhas

A importância das ruas

3/1/2011

Não é sem razão que a rua ocupa lugar de destaque não só nas lembranças como na formação de todos aqueles que, sem serem seus moradores, as frequentaram e as frequentam com alguma assiduidade.

Eu me refiro à rua como entidade concreta, com existência física, palpável, detectável, e ao mesmo tempo entidade abstrata, pois, impessoal, atemporal e sem localização certa – qualquer rua - que pairando acima dos sujeitos, proporciona um rico aprendizado da vida e dos homens. Eu me refiro à voz das ruas, que em verdade é a voz do mundo, pelo menos do mundo que está ao nosso alcance. Voz que nos ensina nos coloca diante de uma realidade sem máscara, sem subterfúgio, sem intermediários. Rua que se contrapõe à clausura a que se submete o homem moderno. Clausura representada pelo automóvel e pelas grades, que retiraram o homem das ruas.

Será que perdemos as ruas?

Na rua aprende-se a sair de si e a olhar ao redor. Do interior para o exterior. Da imagem para a realidade.

Lembro-me de haver lido que a obra "Libertinagem" revelou uma transformação na poesia de Manuel Bandeira, em razão da vivência do poeta na Rua do Curvelo, no morro do mesmo nome, localizado no Rio de Janeiro. Segundo seu amigo, o poeta Ribeiro Couto, essa rua mostrou a Bandeira "aquilo que a leitura dos grandes livros da humanidade não pode substituir: a rua". Ainda, a respeito, a escritora Lúcia Miguel Pereira disse que o referido livro representou para o poeta a vitória da "vida exterior sobre a interior". E, o próprio Bandeira confirmou que a Rua do Curvelo trouxe para a sua poesia "o elemento de humildade cotidiana".

É exatamente essa libertação dos grilhões interiores que a rua proporciona, por meio do conhecimento da "vida circundante". Retira-nos do casulo do nosso interior, nos torna mais simples, humildes e solidários. E, evidentemente, mais sábios. Trata-se da sabedoria haurida do convívio democrático das ruas. Nos bares, nas padarias, nos pontos de espera das conduções, dentro dos táxis, no jornaleiro, no engraxate, nos supermercados. É claro que para se aproveitar a sabedoria das ruas é preciso conversar, ouvir, conviver com as pessoas. É imprescindível ter vontade de se comunicar, trocar impressões, afetos, interagir. Quem estiver ensimesmado, não gostar de gente, e só de si, quem enfim não se sentir integrante dessa fascinante raça humana não aproveitará a rua.

Quem na literatura brasileira melhor retratou a rua foi João do Rio, pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto, jornalista, literato, membro da Academia Brasileira de Letras, e festejado cronista carioca do início do século passado. Seu livro "A Alma Encantadora das Ruas" é uma coletânea de crônicas que abordam inúmeros aspectos da vida extraídos das ruas, dos seus acontecimentos, dos personagens que por elas transitam, dos dramas humanos que as têm como palco, das particularidades de várias delas, enfim é um extraordinário repositório da vida vivida nas ruas.

Eu, da minha parte, posso garantir tê-las curtido e com elas muito aprendido.

Quando me recordo das ruas de São Paulo e por elas ocasionalmente passo, sinto um misto de frustração, melancolia e vacilações de memória. Frustro-me porque as ruas visitadas não são mais as minhas ruas. Fico melancólico pelas recordações que me vem à mente, acompanhadas por uma saudade terna, aconchegante que aquece a alma. E, a memória passa a me preocupar, porque não consigo reproduzir mentalmente as ruas tal como eram no passado e que não guardam identidade com as do presente.

O escritor Antônio de Alcântara Machado falando de São Paulo afirmou que "aqui as casas vivem menos do que os homens e se afastam para alargar as ruas".

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Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.