Marizalhas

A cachaça salvadora

23/8/2010

O caso que seria julgado era dativo. Mais um dentre os inúmeros para os quais fui nomeado durante os primeiros anos de exercício profissional.

Quero consignar a minha gratidão ao instituto da advocacia dativa, dirigida à defesa de réus pobres, que era utilizada pelos juízes não só do Tribunal do Júri, como das varas singulares. O número de Procuradores do Estado, lotados na procuradoria de Assistência Judiciária, era insuficiente para o atendimento da grande quantidade de acusados carentes. Mercê dessas nomeações eu e todos os advogados da minha e das gerações anteriores, tiveram a possibilidade de desenvolver-se na advocacia criminal, especialmente na Tribuna do Júri. Por outro lado, nós pudemos entrar em contato com um Brasil que mal ou que nada conhecíamos. Refiro-me ao Brasil da pobreza, do analfabetismo, das carências de toda ordem. Soubemos que os valores que nos norteavam e ainda norteiam não são os valores comuns a todos os brasileiros. Na defesa de migrantes, que constituíam a maioria dos defendidos, tomamos ciência da existência de outros valores, por eles seguidos à risca. A ofensa a um desses valores justificava pronta e vigorosa reação de conseqüências imprevisíveis ou até previsíveis.

Lembro-me, como exemplo, do acusado de alcunha "cabeça de porco" que assassinara a vítima porque esta lhe dissera ter o "corpo fechado". Como o acusado duvidava desse atributo corporal da vítima, esta para evitar maiores discussões que poderiam terminar em tragédia, fez um repto: "pode atirar, eu provarei que tenho o corpo fechado". A crença da vítima era real, na blindagem de seu corpo. Bastou o desafio para que o cético réu acionasse o seu revólver e dissipasse a dúvida existente.

No entanto, o caso que eu quero narrar não diz respeito à motivação do delito, mas a um aspecto levantado durante o julgamento, e relacionado às condições econômicas dos protagonistas.

Eu fora nomeado defensor dativo de um devedor inadimplente, que matara a vítima credora.

O notável e saudoso promotor Victor Lopes Teixeira, um dos acusadores mais temidos do Primeiro Tribunal do Júri, esperou a minha fala para lançar um argumento que lhe soava decisivo para a condenação. Passou a dar ênfase a um fato que, no seu entender, demonstrava que o acusado possuía boas condições financeiras, contrapondo-se à minha argumentação, no sentido de que o réu era de extrema pobreza.

Realmente, procurei mostrar as dificuldades pelas quais passava o acusado, e que colocavam em risco a sua e a sobrevivência de sua família, fato este que impedia o pagamento da dívida.

A vítima não convencida da má situação econômica do acusado, em uma das vezes que foi lhe cobrar, ofendeu-lhe impiedosamente e procurou agredi-lo. Este reagiu, prontamente, tomado de grande indignação, e praticou o homicídio objeto do julgamento.

O inesquecível amigo Vitão, como era chamado o extraordinário "parquetier", procurava embasar a acusação em sólidos argumentos jurídicos, bem como na matéria fática existente nos autos. Quanto aos fatos enfatizou as boas condições do acusado. No entanto, não o fez com base em provas convincentes.

Utilizou, na verdade, um único argumento, parcialmente verdadeiro, mas que possuía uma premissa falsa e uma conclusão errada.

A premissa verdadeira: o acusado diariamente parava na padaria vizinha à sua residência e tomava um "rabo de galo".

A premissa falsa: o promotor afirmava com convicção que "rabo de galo" era composto por vermute e por uísque.

A conclusão errada, por influência da premissa falsa: o elevado custo da bebida, que induzia à "riqueza" do acusado.

Em face dessa alegação, solicitei um aparte, prontamente concedido:

- Vossa Excelência é um grande promotor, um profundo conhecedor de Direito Penal e um professor emérito, mas de cachaça entendo eu : rabo de galo é uma mistura de pinga com vermute.

Em seguida olhei para os jurados e verifiquei que quatro deles balançavam afirmativamente a cabeça, concordando com a minha etílica explicação. Minha tese foi acolhida pela maioria dos jurados e o réu foi absolvido: legítima defesa da honra.

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Colunista

Antonio Cláudio Mariz de Oliveira é advogado.