Lições Filosóficas do Direito Privado

Normas condicionais e relações privadas: um olhar da lógica deôntica sobre as normas de direito privado

Normas condicionais e relações privadas: um olhar da lógica deôntica sobre as normas de direito privado.

26/8/2021

Quiçá a aparente discrepância entre a lógica simbólica e o Direito, há profunda e complexa investigação no campo da lógica deôntica que está a demonstrar, desde o famoso ensaio "Deontic Logic" de G.H. von Wright, publicado nos anos 50, que há uma vasta articulação entre os enunciados normativos e os sistemas lógicos avançados. Se, por um lado, a lógica encontrou dificuldades concretas no trato de uma pretensa metodologia das ciências em geral e no terreno das ciências empíricas em particular, por outro logrou realizar um profícuo projeto de delimitação dos campos científicos, não somente no âmbito das ciências naturais, mas também nos pátios das ciências sociais.

O problema da lógica jurídica cinge-se, em parte, em fornecer certas bases para a edificação de uma teoria científica do direito, especialmente dos enunciados normativos e suas respectivas designações, além de dar conta do complexo aparato sociológico do direito, subscrito ao mundo da existência social. O Direito vê-se assim tomado como estrutura complexa, composta por uma linguagem determinada, as normas, e por atividades humanas, os fatos, as ações e os estados-de-coisas. Linguagem e ação: eis os dois pontos cardeais do Direito.

Em lógica proposicional, há uma distinção entre função proposicional e função designativa/descritiva. Função proposicional é destinada a converter uma variável (x, y ou z) em constante (1, ½, 2). Função designativa é a expressão que se transforma em designação de objetos ao substituir uma variável por uma constante. Logo, a conexão entre a lógica proposicional e a lógica deôntica deve pressupor três requisitos: (i) que os operadores deônticos expressem asserções deônticas bem constituídas, isto é, enunciados normativos bem formados, através da adequada articulação entre os predicados verbais, os agentes e os imperativos; (ii) que os enunciados deônticos possam ser tomados como sentenças normativas em que a condicional esteja presente tanto na antecedente como na consequente, o que Alchourron e Bulygin chamam de concepção insular, ou apenas na consequente, o que os autores denominam concepção ponte; (iii) a semântica dos mundos deônticos não se reduza à meras deduções de premissas normativas e fáticas, mas de operadores deônticos presentes tanto no antecedente condicional como na consequente das sentenças normativas.

Nesse sentido, a forma lógica dos enunciados deônticos terá seu valor de verdade condicionado tanto às próprias exigências de significação involucradas no objeto referencial, a saber, a ordem, como também do que é viabilizado pelas propriedades conceituais do enunciado em questão, como o operador deôntico, a descrição do fato e das sanções correspondentes.

Analisando a estrutura das normas condicionais, Alchourron apresenta duas concepções quando tratamos de enunciados normativos: concepção ponte e concepção insular1. Na concepção ponte, normas condicionais são enunciados mistos, pois o operador deôntico só aparece na consequente. O enunciado misto, assim, é formado por uma premissa antecedente descritiva, e por uma consequente formada pelo operador deôntico. A concepção insular, por outro lado, pressupõe que o operador deôntico afete todo o enunciado condicional. Está, assim, presente tanto no antecedente como no consequente.

As duas concepções rivais apresentam vantagens e desvantagens. A vantagem da primeira, segundo Zuleta2, está em que permite deduzir uma norma categórica a partir de premissas consistentes em uma norma condicional, pois apoia-se em uma descrição factual. O enunciado descritivo presente no antecedente descreve afirmativamente as circunstâncias indicadas no antecedente da norma condicional, subsistindo, aqui, uma implicação inferencial que conecta o antecedente descritivo ao consequente deôntico. Nesta concepção, há dependência epistêmica quanto a validade da "crença epistêmica" de que a implicação em questão é assumida como padrão do valor de verdade involucrado na prescrição.

A concepção insular, por sua vez, rechaça inferências deste tipo, pois tanto no antecedente como na consequente subsiste o operador deôntico, contaminando todo o enunciado em suas duas partes. Nesta concepção, há duas importantes observações: primeiramente, que uma descrição desempenha uma função "normativa", a saber, que o uso do antecedente condicional não implica tão somente em uma descrição dos fatos, mas já carrega consigo uma linguagem performativa correspondente ao que é semanticamente consistente ante a constatação de um fato qualquer. Constata-se um fato e, se x, então teremos necessariamente a "presença" de uma norma em razão do estado-de-coisas descrito no antecedente condicional.

No domínio da justiça comutativa, a saber, do horizonte das relações privadas, qual o tipo de concepção prevalece? Ou seja, enunciados normativos que lidam com relações jurídicas próprias do direito privado são logicamente afeiçoados à qual das duas concepções? Qual é, em suma, a estrutura lógica oblíqua de enunciados normativos específicos do direito privado?

Via de regra, normas de direito privado são enunciados normativos bem formados quando: (i) são capazes de designar simultaneamente uma variedade de estados descritivos de coisas que convergem em relações jurídico-sociais idealmente concebidas como relações determinadas segundo juízos avaliativos positivos em acordo ao sistema normativo; (ii) descrevem com clareza um ação ou abstenção humana idealmente tipificada, a partir da qual se extraem consequências fáticas e jurídicas; (iii) expressam agentes determinados, circunstâncias singulares e relações entre tais agentes qualificadas por meios e fins específicos; (iv) postulam combinações diversas entre os agentes, as circunstâncias e as relações juridicamente relevantes, pelo que os estados-de-coisas deonticamente concebidos passam a ser vistos como mundos semânticos designados pelos enunciados normativos próprios do direito privado; e (v), requisito decisivo para o propósito deste artigo, as relações privadas são qualificadas a posteriori, pois só são concebidas deonticamente após uma análise descritiva.

A análise constatativa antecede a performance avaliativa quanto ao tipo de incidência normativa. Há, nos enunciados de direito privado, uma propriedade contrafactual implícita: a noção de que o agente tem a faculdade de agir de forma x ou y, pelo que se agiu de forma x, poderia ter agido de forma diversa e, ainda assim, receber uma qualificação determinada. A relação entre o âmbito de incidência das normas jus-privatistas e a noção de faculdade de agir ou abster-se de agir é uma constatação própria deste tipo de enunciado.

Diante disso, parece que a concepção ponte, na qual o antecedente condicional tem caráter descritivo e somente a consequente tem caráter prescritivo, é a concepção própria de normas de direito privado.

Nestes casos, o antecedente condicional expressa uma sentença normativa cujo juízo é tomado como de tipo hipotético-descritivo. Perante isso, o intérprete presta atenção primeiramente ao fato exposto, para então avaliar as consequências jurídicas. Há aqui um raciocínio abdutivo3, em que a razão propõe hipóteses adjacentes à descrição do argumento antecedente para então refletir o âmbito semântico do consequente condicionado.

O agente, dotado de faculdades, age para modificar a realidade factual do mundo, para somente a partir de então assumir responsabilidades por suas ações. A imputação normativa é posterior. O juízo prático do intérprete não poderia fazê-lo sem o suporte antecedente da descrição hipotética do fato. Perante o fato, o intérprete vê-se diante de uma miríade de possibilidades, de uma autêntica modalidade sincrônica, na qual muitas alternativas estão igualmente involucradas. É justamente a atenção ulterior ao consequente, à parte do enunciado condicional que estipula a forma como o Direito lança uma qualificação determinada sobre o fato, o motivo que o conduz a tomar as normas de direito privado como enunciados normativos – ou conceitos jurídicos – classificáveis como normas condicionais de tipo ponte, na classificação aportada por Alchourron e Bulygin.

Segundo García Máynez4, os conceitos jurídicos podem ser classificados desde o ponto de vista: (i) dos objetos a que se referem; (ii) de sua extensão; (iii) de seu conteúdo; e (iv) de suas relações recíprocas. Em suma, o objeto designativo, o limite semântico, a matéria e as relações sociais aprovadas e reprovadas segundo esta mesma matéria. No que tange aos enunciados normativos do direito privado, nota-se que (i) o objeto que é designado pelo enunciado conta com um tipo ideal, um objeto próprio do direito, a saber, um instituto jurídico que estabelece a paz e a estabilidade nas relações privadas; (ii) se estendem para toda a vida privada, seja obrigando, ou proibindo ou permitindo comportamentos; (iii) trata de matérias que orbitam em torno da justiça comutativa e, por fim, (iv) são determinativas de um modo de relacionamento entre os agentes que destaca a relevância do ato de vontade na consumação destas mesmas relações, supondo a autonomia racional decisória dos agentes que, apoiados no pressuposto de que conhecem as regras previamente, assumem a responsabilidade por seus atos.

Em suma, os pontos de vista que compõem o horizonte semiótico dos conceitos jurídicos acarretam, para as normas de direito privado, a imprescindível tarefa de se atentar para o mundo hipotético semântico involucrado no antecedente condicional de enunciados deste tipo, para então cogitar o consequente deôntico correspondente.

Com base nisso, é perceptível a diferença radical entre as concepções insular e ponte. A primeira, de indiscutível relevância para as normas de direito público e, especialmente, para normas fundamentadas na legalidade estrita. A concepção ponte, ao invés, supõe uma semântica deôntica simultaneamente descritiva e avaliativa. Assim, no que diz respeito às normas condicionais, há um modo adequado de enfrentá-las semanticamente dentro da lógica deôntica: supondo a diferença entre o antecedente e o consequente condicional.

*Marcus Boeira é professor-adjunto e pesquisador vinculado ao Departamento de Direito Público e Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da UFRGS. Pós-doutorado na Pontificia Università Gregoriana, Roma. Doutor e Mmestre pela USP. Visiting Scholar na Facoltà di Filosofia da Pontificia Università Gregoriana, onde cursou o pós-doutorado em filosofia, investigando a lógica modal e doxástica no Tratado Thesaurus Indicus III e IV de Diego de Avendaño, como também uma variedade de manuscritos de Lógica e Dialética constantes nos arquivos da Biblioteca Vaticana e no Archivio Storico da Pontificia Università Gregoriana (antiga Biblioteca do Collegio Romano). Líder do Grupo de Pesquisa - CNPq: Lógica Deôntica, Linguagem e Direito. Áreas de abrangência: Filosofia e Teoria do Direito, Lógica deôntica, escolástica ibérica e colonial dos séculos 16 e 17. Autor de livros. Membro do Conselho Editorial da Revista Communio Brasil.

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1 ALCHOURRON Y BULYGIN, Carlos e Eugenio. Analisis Logico y Derecho. 1ª ed. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 267 e ss.

2 ZULETA, Hugo R. Normas y Justificación: una investigación lógica. 1. ed. Madrid: Marcial Pons, 2008.

3 O raciocínio abdutivo foi estudado por PEIRCE, Charles S. Semiótica. 1ªed. São Paulo: perspectiva, 1994, p. 5 e ss.

4 GARCÍA MÁYNEZ, Eduardo. Classificación de los Conceptos Jurídicos, in DIANOIA (Anuario de Filosofia), año II, num. 2, 1956. Mexico: fondo de cultura, p. 2 e ss.

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Colunista

Rafael De Freitas Valle Dresch é advogado e professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na graduação, mestrado e doutorado. Mestre em Direito Privado pela UFRGS e doutor em Direito pela PUC/RS, com estágio doutoral CAPES na University of Edinburgh (Reino Unido). Realizou pós-doutorado em Direito Concorrencial e Digital na University of Illinois at Urbana-Champaign (EUA). Membro do Chartered Institute of Arbitrators (CIArb) e do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr). Árbitro listado na Câmara de Arbitragem da FEDERASUL (CAF) e na Câmara de Mediação e Arbitragem da Associação Comercial do Paraná (ARBITAC). Associado fundador da Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD). Sócio do escritório de advocacia Coulon, Dresch e Masina Advogados.