Levando a sério o erro judiciário

Levando a sério o erro judiciário - Apresentando a coluna

Levar o erro judiciário a sério equivale a transformá-lo no objeto central de uma análise rigorosa, segundo o método científico, quiçá tornando-o uma disciplina autônoma, necessariamente interdisciplinar, já que isso impõe enfrentar uma série de problemas interconectados.

7/6/2024

There is a Crack in Everything. That’s How the Light Gets In.
(COHEN, 1992) 

1. O erro judiciário no Brasil do século XXI

A condenação de um inocente parece ser daqueles assuntos que geram inquietação em praticamente todos. Afinal, é no mínimo desconfortável só imaginar ser (ou ver alguém próximo) punido por algo que não se fez.

Essa representatividade no rol dos nossos maiores pavores parece, todavia, que sempre decorreu muito mais da dimensão de suas consequências que propriamente do convívio com uma grande quantidade de inocentes injustamente punidos, já que a História do erro judiciário no Brasil do século XX não registra muitos casos1.

Aliás, essa escassez de casos registrados sempre favoreceu a defesa de que os erros da justiça brasileira eram excepcionais e formavam insignificante conjunto2 e, como essa ideia de excepcionalidade, ou de insignificância numérica, não poderia ser facilmente refutada – afinal, a infalibilidade nem é possível, nem indispensável – as coisas terminavam seguindo bem, mantendo-se, nesse ponto, a credibilidade do nosso Sistema de Justiça3.

Entretanto, nos últimos anos, a pauta de críticas ao nosso Judiciário vem sendo cada vez mais incrementada por casos de condenações errôneas, o que parece bem nítido não apenas na mídia tradicional, mas notadamente nos novos meios de comunicação vinculados à internet4, mesmo porque ambas as espécies mantêm marcante interação recíproca.

À primeira vista, pode-se pensar que essa mudança decorreria unicamente da maior visibilidade gerada por essa revolução nos meios de divulgação, já que não parece mesmo haver razão para admitir que a justiça brasileira passou a errar mais nesses últimos anos;  todavia, há que se reconhecer que, para despertar o interesse daqueles que protagonizam esse tipo de controle social, faz-se imprescindível que o erro emerja com certa nitidez, ou seja, com a necessária aptidão para formar algum consenso, não bastando o grito daquele que se diz injustiçado, nem mesmo uma boa estória.

Em outras palavras, ainda que não se exija o reconhecimento formal, pelo próprio Judiciário, o surgimento de mais um caso de erro judiciário dependerá, sobretudo, de uma demonstração convincente.

Admitindo isso, sobressai como uma boa explicação para o mencionado incremento, o emprego de algumas tecnologias para conhecer os fatos do passado e, consequentemente, para revelar eventuais deficiências de (ato de) conhecimento já operado5, conforme se ilustra a seguir:

“a) a condenação do acusado por estupro com base no reconhecimento da vítima, posteriormente confrontada com um exame técnico da imagem do próprio estuprador quando deixava a cena do crime, captada por sistema de videovigilância, que demonstra que o condenado seria, pelo menos, 25 cm mais baixo que o criminoso6; b) decisão que, com base no depoimento de dois policiais militares, admite que o acusado transportava em seu carro um tablete com 800 gramas de maconha, posteriormente confrontada com um vídeo gravado por um sistema de segurança de um condomínio próximo ao local da abordagem, donde se vê que um dos policiais, poucos segundos antes da descoberta da droga, coloca um volume equivalente no carro do acusado7; c) a condenação de um indivíduo pela prática de roubo e estupro (perpetrados num mesmo contexto) com base no reconhecimento feito pela vítima e no depoimento do sujeito que, apanhado com todos os bens subtraídos, afirmou que os adquiriu do acusado, posteriormente confrontada com um laudo de DNA, que atesta que o material biológico encontrado na cena do crime (colcha da cama em que se deu o crime sexual) proveio justamente deste que foi considerado pela Justiça apenas como sendo o receptador8

Registre-se, de logo, não ser recomendada qualquer espécie de deslumbre com tais tecnologias, a ponto de considerar resolvido o problema da verdade no processo ou mesmo cogitar sobre sua infalibilidade. É claro que elas também apresentam seus problemas, chegando, inclusive, a configurar novas fontes de erros, conforme já se vê em alguns debates protagonizados entre os cientistas forenses9.

Forçoso aceitar, entretanto, que essas tecnologias propiciam uma elevação da confiabilidade da “reconstrução” de um evento do passado, quando se compara com aquela conferida pelos meios tradicionalmente empregados nos processos judiciais. Assim, seu emprego adequado, além de permitir a exposição e correção de uma condenação errônea, termina viabilizando um bom indicativo sobre o risco de erro associado à justiça criminal como um todo, na medida em que a amostra resultante do seu emprego cumulado não estaria relacionada a qualquer fator que tornasse mais factível o erro10: ao menos, não se enxerga razão concreta que indique que a justiça criminal brasileira opera sob um risco de erro menor que aquele associado às operações do Sistema que redundaram nos erros detectados e corrigidos.

Ademais, referida amostra termina neutralizando o argumento do «diminuto número dos casos de erros conhecidos como demonstração a excepcionalidade dos erros cometidos», isso porque a excepcionalidade dos erros (detectados) é, por enquanto, bem melhor explicada pela excepcionalidade da sua descoberta e reconhecimento. Basta tomar como exemplo o DNA, que depende da disponibilidade de vestígios biológicos na cena do crime ou no corpo da vítima, o que é algo aleatório, além de sua correta coleta e preservação, o que se mostra raro na realidade das investigações criminais Brasil afora.11

O quadro exposto indica que estamos à deriva: não temos a menor noção do risco de erro associado ao nosso Sistema de Justiça Criminal, quer sob seu aspecto quantitativo – nossa cifra oculta (os casos de inocentes injustamente condenados que não foram assim reconhecidos), além de oculta, não pode ser minimamente estimada –, quer sob seu o aspecto qualitativo – a relação entre os fatores que incrementam o risco de erro e as medidas de contenção adotadas nas praxes judiciais é ainda algo absolutamente desconhecido.

O pior de tudo é, ao que parece, que ainda não demos conta disso e mantemos a crença de que nos mantemos navegando em rota conhecida.

Em relação ao Judiciário, à exceção do reconhecimento de que as praxes relacionadas à “prova de reconhecimento de pessoas” conformam fonte de condenações injustas, o que gerou a criação de grupo de trabalho no âmbito do CNJ (Portaria no 209, de 31/8/2021), até bem pouco tempo não havia o registro de qualquer outra medida diretamente voltada à prevenção de erros12.

A Academia brasileira também: basta acessar o diretório de grupos de pesquisas do CNPQ e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações para concluir que as ciências jurídicas ainda não se preocupam em conhecer o risco de erro associado ao nosso Sistema de Justiça Criminal e a partir daí enxergar caminhos para sua mitigação. 

2. Por que focar no erro?

O/a leitor/a poderia pensar que o quadro retro não configura necessariamente um problema, já que seria possível buscar a evolução do Sistema de Justiça Criminal sem chamar a atenção para um problema tão delicado. Aliás, pode ser visto como natural pensar que isso implicaria o reconhecimento de uma falibilidade-que-preocupa, o que prejudicaria a imagem/confiabilidade do próprio Judiciário, já que erro, culpa, responsabilidade e vergonha seriam ideias indissociáveis.

Nada mais equivocado. Não há como negar que essa associação ainda marca o senso comum; todavia, é algo que precisa ser desmitificado com a máxima urgência.

Antes de tudo, se se “reduz a velocidade”, consegue-se ver que é possível pensar em errar menos, mesmo admitindo que não se erra muito; ou seja, considerando os erros como custo de um dado sistema/organização, não é necessário antes concluir que estes não compensam os benefícios alcançados, para só então pensar em reduzi-los. E, quando se pensa na Justiça Criminal, não se pode tomar a eficiência sob uma ótica meramente consequencialista; deve-se atentar para um componente ético que impõe aos gestores do Judiciário (e à sociedade civil organizada) a minimização dos riscos de erro associados a cada operação do Sistema e ao seu resultado cumulado: assumir a sua falibilidade e instituir mecanismos voltados à correção e prevenção de condenações errôneas é algo essencial numa ordem democrática e estruturada em torno da dignidade da pessoa humana.

Outrossim, o potencial pedagógico dos erros há muito deixou de ser uma máxima do senso comum e passou a ser objeto de um ramo autônomo da Ciência (Safety Science), que já desenvolveu (e segue aperfeiçoando) o caminho adequado a uma evolução baseada no aprendizado com erros.

Assim porque, embora se possa pensar na evolução do Sistema mediante reflexões teóricas, com a testagem argumentativa (ou mesmo em experimentos controlados) de modelos capazes de melhorar a vocação epistêmica do processo penal, a permanente busca da evolução do Sistema de Justiça Criminal brasileiro, com a redução do risco de erro judiciário, jamais poderia desconsiderar o caminho que melhor aproveita o seu potencial.

Em síntese, precisamos focar no erro, não apenas porque conformam “mais” uma oportunidade de aprendizado organizacional, mas porque são indispensáveis se se quer pensar minimamente na qualidade de um dado sistema e/ou organização, conformando, por isso, um preciosíssimo ativo. 

3. O que se quer dizer com “levar a sério o erro judiciário”?

Levar o erro judiciário a sério equivale a transformá-lo no objeto central de uma análise rigorosa, segundo o método científico, quiçá tornando-o uma disciplina autônoma, necessariamente interdisciplinar, já que isso impõe enfrentar uma série de problemas interconectados.

Com base nos aportes da ciência do direito processual penal, do direito probatório e da Epistemologia da prova, urge refletir sobre (i) a criação de um (sub)sistema de investigação/descoberta de erros, (ii) o aperfeiçoamento do (sub)sistema de reconhecimento e correção de erros, incrementando a sua segurança jurídica, reduzindo sua seletividade.

É também urgente que, a partir de um diálogo entre o Direito Administrativo e a Teoria dos Direitos Fundamentais, se reflita sobre o conceito de «erro que gera para o Estado o dever de indenizar a vítima», de modo que se possa apressar a adequação das praxes judiciais aos valores constitucionalmente tutelados e “liberar” o Sistema para evoluir: afinal, se o Estado-jurisdição não erra, não haveria por que se pensar em melhorar sua qualidade.

Aproveitando o conhecimento produzido no âmbito da Safety Science, deve-se também pensar num modelo de evolução baseado no aprendizado com erros, de modo que cada erro reconhecido alimente um ciclo virtuoso de aprimoramento constante do Sistema de Justiça Criminal.

Enfim, levar a sério o erro judiciário significa (i) deixar de tratá-lo como um tabu, (ii) reconhecê-lo como um desafio sistêmico e (iii) abordá-lo de modo rigoroso e orientado a soluções, convertendo-o em uma oportunidade de aperfeiçoamento institucional.

E é isso o que se tentará fazer em cada publicação dessa coluna, buscando sensibilizar os atores do Sistema de Justiça sobre a importância dessa agenda, ampliar e aprofundar o debate sobre o tema e estimular a realização de pesquisas, publicações, eventos.

Sejam todos/as bem-vindos/as... que apreciem a jornada!!!

__________

1 Uma busca textual em todos os números da Revista Brasileira de Ciências Criminais revela aqueles que se tornaram conhecidos como casos de erro judiciário: a) o caso Mota Coqueiro (CARVALHO FILHO, Luiz Francisco. Mota Coqueiro: o erro em torno do erro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 33/2001, p. 261 - 274 | Jan - Mar / 2001); b) o caso dos Irmãos Naves (DOTTI, Renê Ariel. O caso dos irmãos Naves. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 8/1994 | p. 184 - 197 | Out - Dez / 1994); e c) o caso do Citroen Negro, conhecido também como o crime do Sacopã (DOTTI, Renê Ariel. O crime do Sacopã. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 16/1996, p. 326-342, out-dez/1996). João Honório de Souza Franco, que em sua tese de doutorado sobre a responsabilidade do Estado por erro judiciário abriu tópico para abordar os casos com maior repercussão, menciona pesquisa em bibliografia correlata, que aponta os mesmos três casos (FRANCO, João Honório de Souza. Indenização do erro judiciário e prisão indevida. Tese de doutorado em Direito. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 160-172). Ainda se pode agregar a esses o d) Caso Joel (MARTINS, Ricardo Cunha. Prova criminal: história de um erro judiciário: o caso Joel – o homem errado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002) e e) o caso do Maníaco de Anchieta (Disponível aqui). Confirmando o limitado número de casos que repercutiram, o Canal Ciências Criminais, que dedica espaço para abordagens de casos de erro judiciário, acrescenta apenas os casos Escola Base (1994) e o caso do Bar Bodega (1996), que não versaram sobre a condenações errôneas, mas de prisões provisórias indevidas decorrentes de abusos/equívocos da investigação. Disponível aqui.

2 À guisa de ilustração a seguinte matéria jornalística: “Para o juiz Fábio Uchôa, titular do 1º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, no entanto, os equívocos cometidos pelo Judiciário correspondem a exceções. Ele afirma que o número de casos desse tipo não é significativo. — Os erros são pouquíssimos, se considerarmos o universo de pessoas julgadas. O número é até não considerável. Claro que o ideal é que não haja erro algum, mas qualquer obra humana está sujeita a erros — avalia o magistrado: — Acho que a Justiça criminal brasileira atende bem à sua finalidade”. (Disponível aqui).

3 Perceba-se que a baixa avaliação da credibilidade do Judiciário tem como razões declaradas o fato de que o serviço que presta seria “lento, caro e de difícil utilização.”. (MARRARA, Thiago. Macera, Paulo H. Responsabilidade Civil do Estado por Erro Judiciário: aspectos conceituais, doutrinários e jurisprudenciais. In Revista de Direito Administrativo Contemporâneo. ReDAC18, 2015, p. 136.). Confira-se diretamente o Relatório ICJBrasil - Índice de Confiança na Justiça no Brasil. Disponível aqui.

4 Na mídia tradicional, pode-se mencionar o quadro do programa jornalístico “Fantástico” chamado “Projeto Inocência”, a série de reportagens da Folha de São Paulo, “Inocentes Presos”; em canais fechados, o programa “Em Nome da Justiça”, do AXN; nas mídias vinculadas à Internet, podemos destacar a série documental “Innocence Files”, na Netflix; sem mencionar perfis em redes sociais, sites, podcasts disponíveis em plataformas de streaming etc.

5 BRAGA DAMASCENO, Fernando. Pensando a qualidade do juízo fático-probatório: um modelo de evolução baseado no aprendizado com erros. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 9, n. 3, p. 1213-1256, set./dez. 2023, p. 1216. 

6 O caso Antônio. Disponível aqui.

7 O caso Douglas. Disponível aqui.

8 Caso Israel. Disponível aqui.

9 Sobre os riscos das provas de vídeo, ver RICCIO, Vicente; SILVA, Beronalda; GUEDES, Clarissa; MATTOS, Rogério. A Utilização da Prova em Vídeo nas Cortes Brasileiras: um Estudo Exploratório a Partir das Decisões Criminais dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Criminais – RBCCRIM, v. 118, jan-fev, 2016) e MNOOKIN, Jennifer L., The Image of Truth: Photographic Evidence and the Power of Analogy, Yale Journal of Law & Humanities, v. 10, Iss. 1. Art. 1. 1998. Sobre recente discussão sobre a segurança e controlabilidade de software utilizado na interpretação de resultados de exames de DNA. 

10 Todos esses casos compartilham uma origem comum: a disponibilidade de determinados elementos de prova que (analisados com a ajuda de novas tecnologias) foram capazes de fazer prevalecer a hipótese oposta àquela defendida pelo acusador e acolhida pelo Judiciário.  Em relação às chamadas “DNA exonerations”, p. ex., trata-se de casos em que o criminoso deixou material biológico próprio na cena do crime ou no corpo ou roupas da vítima.

11 Com base em pesquisa empírica sobre os casos de revisões criminais no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, um dos maiores e situado num dos estados mais desenvolvidos do Brasil, o professor HADDAD registra que “para se ter ideia do nível de emprego do teste de DNA pós-condenação, em nenhuma das 4.643 revisões criminais ajuizadas houve a utilização da tecnologia, na tentativa de inocentar o sentenciado.” (HADDAD, Carlos H. B. Velho conhecido, nova aplicação: exame de DNA pós-condenação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 187/2022. p. 95 – 120. 2022, p. 103).

12 Essa desatenção com o risco de erro é também percebida por DUCE (2022, a – p. 315-316) em relação ao Sistema de Justiça chileno: “En Chile, la evidencia disponible muestra la existencia de uma cantidad no despreciable de casos de condenas erróneas. Investigaciones recientes, por su parte, identifican prácticas muy similares a las descritas por la literatura comparada como aquéllas que tienen más incidência en generarlas. Por lo mismo, todo indica que existiría un problema de mayor magnitud que el que históricamente se ha considerado.”. DUCE JULIO, Mauricio. La corrección de condenas erróneas en el ámbito comparado: análisis de algunos ejemplos para alimentar el debate en Chile. Revista Brasileira De Direito Processual Penal, vol 8, 2022, p. 693.

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Colunista

Fernando Braga é professor do mestrado da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados-ENFAM. Líder do Laboratório de Prevenção de Erros Judiciários (GP-ENFAM). Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Mestre em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha). Membro da Comissão Acadêmica do Exame Nacional da Magistratura-ENAM. Membro da Academia Americana de Ciências Forenses (jurisprudence). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 5ª região. Ex-procurador da República.