A família, como base da sociedade, goza de especial tutela no § 7º do art. 226 da CF/88, que assim dispõe: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
O planejamento familiar, regulamentado originariamente pela lei 9.263/96, explicita um conjunto de ações de regulação da fecundidade, limitação do aumento da prole pela mulher e pelo homem e vem atrelado às políticas públicas gestadas pelo SUS - Sistema Único de Saúde, no que diz respeito à atenção à mulher, ao homem ou ao casal, compreendendo, dentre outras finalidades, a assistência à concepção e contracepção; atendimento pré-natal; assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; controle das doenças sexualmente transmissíveis e o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis.
Quando se fala em políticas públicas de saúde, seu conteúdo original reside na própria CF/88 que atribui ao Estado o dever de garantir a saúde da população, com a consequente participação de órgãos que atuam de forma direta e preventiva, com atendimento integral e assistencial para a redução dos riscos e doenças.
Por se tratar de uma lei com quase trinta anos de vigência, o tempo - que flui, sem interrupção, em sua inexorável ampulheta - os costumes e a própria tecnologia têm o condão de provocar a revisão legislativa em busca de um ajuste com relação à dinâmica social, que é mutável por natureza.
Assim é que a lei 14.443/22, que alterou parcialmente a anterior, trouxe inúmeras mudanças e, dentre elas, a necessidade de determinar prazo para oferecimento de métodos e técnicas contraceptivas, além de disciplinar condições para esterilização no âmbito do planejamento familiar. Reduziu de 25 para 21 anos a idade mínima entre homens e mulheres para se submeterem a procedimento voluntário de esterilização – laqueadura de trompas e vasectomia - faixa etária não exigida daqueles que tiverem pelo menos dois filhos vivos, sendo terminantemente proibida para menores de idade.
Outra alteração de salutar pertinência e que vai ao encontro dos protocolos médicos recomendáveis, consiste em realizar no próprio ato cirúrgico do parto a esterilização da mulher que, na lei anterior, exigia procedimentos distintos. A contrapartida legal, no entanto, é que a manifestação de vontade da mulher deverá ser ofertada no prazo de sessenta dias, a contar da data do seu propósito e a laqueadura.
O ponto fulcral reside na ausência do consentimento expresso do outro cônjuge ou companheiro no ato da intervenção médica. Prevalece aqui, em toda sua extensão, a autonomia da vontade da pessoa interessada em se submeter ao procedimento. Revela, de forma inequívoca que, não obstante haja o casamento ou a união estável entre o casal, nenhum deles terá domínio absoluto sobre a vida sexual e procriativa do outro.
A autonomia procriativa vem ganhando corpo e reafirma que a pessoa é proprietária de um patrimônio chamado corpo humano, detentora de seus atos, administradora deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e a torna sujeito de direitos e obrigações, além de exteriorizar a dimensão do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana.
A vontade determinada e livre, corolário do principium individuationis, que é o resultado de uma operação coordenada pelo cérebro, forma a ação ideomotriz, que nada mais é do que a realização de condutas selecionadas pela pessoa para o exercício do seu direito de limitação ou aumento da prole, resultado de sua coerência ética. Poder-se-ia até afirmar que desperta a consciência da finalidade do ser humano, delineia com clareza seus objetivos e o habilita a praticar atos que julgar necessários e convenientes para sua vida.